terça-feira, 5 de fevereiro de 2013


LECTIO BREVIS (II)
João Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com

Feto abortado não é regra. É exceção. Então, sendo medida de singular exceção, o inquisitorial procedimento, chamado “prisão provisória” é restrito a determinados crimes, todos dolosos, naturalmente.
Nesse caso de Santa Maria, o fato em si, objetivamente considerado, configuraria, em tese, o homicídio culposo. Só para lembrar: homicídio culposo é aquele em que o agente não tem intenção de matar, mas pratica uma ação virtualmente capaz de produzir o resultado morte. Exemplo típico: testar a coragem de um amigo, entregando-lhe, para que detone contra a própria cabeça, um revólver equipado com quatro dos seis projéteis possíveis.
A “prisão provisória” não pode ser gerada pelo fato em si. Não é o fato que cria as condições, digamos (só para efeitos didáticos) legais, para a imposição da excepcionalíssima medida: é o procedimento. Porque somente o procedimento, e não o fato, por si mesmo, tem idoneidade e virtude para demonstrar que a medida é imprescindível: sem ela as investigações estagnariam. Isso. Imprescindível. O adjetivo cujo significado o delegado e o juiz não foram procurar no dicionário.
Se as investigações podem ser conduzidas através de outros meios de prova, inexiste a qualidade exigida pela Lei 7960, o imprescindível, para dar forma a esse monstrengo da legislação brasileira, chamado “prisão provisória”.
Somente um crime – doloso, acentue-se - sem materialidade e sem testemunhas, por exemplo, permitiria a medida, (feche os olhos para a inconstitucionalidade). Porque, nesse caso, a investigação seria praticamente nula, congelaria, ficaria sem condições de prosseguimento.
É absolutamente inviável, do ponto de vista jurídico, tomar como base, para a aplicação da medida, um fato que configuraria, em tese, crime culposo, hipótese em que a lei não permite a “prisão provisória”.
No caso de Santa Maria, o que se vê é a truculenta ansiedade de transformar em crime doloso um fato hipoteticamente configurador de crime culposo. Em outras palavras, a finalidade da “prisão temporária” foi a de obter a prova de que se trata de crime doloso. Botaram a carreta na frente dos bois.
Some-se a tais argumentos a evidência de que o “dolo eventual” não é presumido, não faz parte do tipo. O fato, cujas circunstâncias objetivas não o revelem de pronto, deverá ser escavado à procura de provas desse elemento subjetivo. A interpretação restritiva imposta pelo rol da Lei 7960 afasta a natureza “finalista” da ação (Handlungslehre). A restrição da lei impede que um crime qualquer atraia a “prisão provisória”. Não basta um sopro do delegado, ou do agente do Ministério Público, para transformar culpa em dolo. O “abacadabra” divino, que transformou o boneco de barro em homem não foi ensinado para ninguém.
 Então, enquanto não houver prova de dolo eventual, não há crime aparentemente culposo, que permita a “prisão provisória”- essa bastarda filha da Inquisição, adotada pelo Direito brasileiro - se o fato desenhar, à primeira vista, em tese, um crime culposo.
E quando a cortina da dúvida desce sobre o cenário do Direito Penal, prevalece uma regra que nos foi ensinada pelos romanos, e que por ser tão rudimentar, tão primária, quase vulgar, talvez seja ignorada pelos doutores: “in dubio, pro reo”.
Resumindo: em Santa Maria está sendo ensaiada uma desastrada prestidigitação com a “prisão provisória”, para deixar os acusados mofando na cadeia com uma prisão preventiva posterior, até se apagarem pelo esquecimento as cicatrizes da tragédia.
 É isso que acontece quando a Justiça está no cio e se acasala com os efeitos do “domínio do fato”: nasce um justiceiro.

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