segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013


LECTIO BREVIS
João Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com

Vestida com uma constitucionalidade que, pela indecência, não lhe permitiria o ingresso em baile de juristas, a Lei 7960, que criou a “prisão provisória”, é uma filha bastarda da Inquisição. Mesmo assim, foi adotada pelos Três Poderes desta terra de palmeiras (e de Corintians também), onde o Xitãosinho e o Xororó cantam o sabiá.
Sob o prisma de uma lídima concepção de Direito, como a que fornece o extrato para a composição do art. 5º da Constituição Federal, a “prisão provisória” não passa de sinônimo de “julgamento sumário”. Nenhum jurista de sólida formação a aplicaria “ictu oculi”, sem escrúpulos, ainda que seu destinatário fosse o mais cruel de todos os facínoras. Porque homem nenhum, que respeite o Direito como ciência, se curvaria a uma lei que permite “prender primeiro, depois a gente vê o que se faz”.
Começa que, com a roupagem que lhe emprestaram os Três Poderes, a “prisão provisória” fica desfocada diante da lente do inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Desde quando “investigação policial” é sinônimo de “processo legal”?
Não existe “processo legal” sem formação de culpa, sem contraditório. E o contraditório não conta como requisito, para o deferimento da “prisão provisória”: é tudo unilateral, subjetivo. Então, esse procedimento medieval, que só depende da vontade do príncipe, não passaria de feto jurídico abortado, graças a um método abortivo chamado Constituição Federal.
Mas, já que os Três Poderes nos enfiaram goela abaixo esse antijurídico instituto, somos obrigados a lidar com ele, pisando em ovos, nem que sejam os ovos dos machos que detêm o poder. E sua aplicação na comarca de Santa Maria contra quatro pessoas, em decorrência de incêndio involuntário causador da morte de mais de duas centenas de pessoas, gera aterradora perplexidade.
Recordando o fato. Atingida por faíscas de um “sinalizador” a espuma, que servia como revestimento acústico, numa boate, gerou fumaça e respingos de fogo. Aos primeiros sintomas de intoxicação, as cerca mil pessoas que lá encontravam desataram uma fuga em pânico. A pouca luminosidade, anulada pelo adensamento da fumaça, desorientou completamente as pessoas, que não atinavam com a localização da única porta de saída. Morreram mais de duas centenas de jovens, e mais de uma centena se encontra hospitalizada.
O clamor público mexeu com as autoridades policiais que, imediatamente, pediram a “prisão temporária”. Foram presos dois responsáveis pela boate, além do produtor da banda e do vocalista, aquele que utilizara o sinalizador durante o “show”.
O currículo de um dos donos da boate, justamente aquele que não se encontrava no local da tragédia, poderá lhe oferecer alguma dificuldade em processo de canonização, se o advogado do diabo, depois de uns tragos, ficar inspirado, como todo mundo. Mas o guri, vocalista da banda? Bah, convenhamos: ele está preso por tentativa de suicídio, movida a dolo eventual...
Para escândalo de todos esses puros de coração a quem a Bíblia prometeu o reino dos céus (e eu to nessa boca), a “prisão provisória” foi solicitada por um delegado que perdeu parentes, amigos e alunos no trágico evento, e determinada por um juiz que, certamente, não teve o prazer de apertar a mão do Torquemada. E nenhum deles consultou o dicionário, para saber o que significa “imprescindível”.
Amanhã eu continuo esse blábláblá. Senão vai ser um saco me aturar. 

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