sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013


UM INQUÉRITO POLICIAL PÚBLICO

João Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com

A medida do sucesso da investigação criminal é o sigilo. É no intervalo silencioso dos protestos e dos aplausos que a investigação respira e toma o caminho da verdade. Sem influências externas, imunizada contra o “olho por olho, dente por dente”, que se esconde num eufemismo chamado “clamor por justiça”.
Não é essa regra, escrita no artigo 20 do Código de Processo Penal, que está presidindo o inquérito policial  na investigação das responsabilidades criminais pela morte de mais de duzentas pessoas na boate Kiss.
Nunca, em sua história, Santa Maria viu tanta gente falando idiomas diversos, tantos veículos de comunicação, tantas emissoras de televisão e rádio, microfones, câmeras e potentes máquinas fotográficas, levando imagens até o outro lado do mar. E tanta disposição de delegados de polícia para falarem, ao vivo e a cores, sobre seus trabalhos na condução do inquérito.
Os superiores do delegado regional de polícia podem tê-lo exposto à maledicência, quando o transformaram em ator principal, entregando o papel de coadjuvante ao delegado investido da competência para presidir inquéritos policiais, quando não com a atribuição específica de apurar homicídios. Quem olha de fora, e não entende essa manobra, pensa que o delegado regional nunca tivera essa oportunidade na sua vida, de aparecer em toda a mídia, local, regional, estadual, nacional e até internacional. Por isso, teria transformado um ato rotineiro, burocrático, sigiloso por ordem do art. 20 do Código de Processo Penal e atrelado às técnicas de investigação, em espetáculo de mídia.
E mais, se colhe também a impressão de que os acontecimentos, rendendo reportagens, entrevistas, “flashes”, e alguns segundos de câmeras, não permitem perder a ocasião. Antes que a mídia busque outros rumos, outras dores, outras tragédias, escândalos e emoções, como a anunciada renúncia do papa, é melhor aproveitar.
Dentro desse espetáculo em que foi transformado o inquérito policial, chegou-se a cogitar de uma segunda reprodução simulada dos fatos, dessa vez com a participação de sobreviventes da tragédia. Especialistas se manifestaram contra o ato, popularmente conhecido como “reconstituição”. Os personagens poderiam reviver a dor, a angústia, a sufocação, a fuga desesperada, talvez o remorso de terem fugido para a vida, pisoteando cadáveres, pessoas agonizantes, gente ferida estendendo os braços, pedindo socorro.
Por outro lado, usar “figurantes” e sobreviventes voluntários no ato não terá efeitos práticos: o espectro polivalente do testemunho esboroa qualquer convicção.
Para quem não sabe, a reprodução simulada dos fatos, prevista no artigo 7º do Código de Processo Penal, é uma faculdade, e não um ato necessário na investigação criminal. É um “plus”, que o bom senso dispensaria, no caso da mortandade na boate Kiss, em respeito ao tamanho das feridas, à imensidão da dor, à tensão social.
Todavia, pelo visto há um o “ego” superior, bem maior do que o bom senso: danem-se os personagens do triste espetáculo. Imagina-se que nos supedâneos superiores haja alguém, que nada entende de investigação, querendo limpar a barra com povo e, mediante uma ordem marcial, esteja botando tudo nos ombros, digamos, do delegado regional. Mas ninguém acredita que o recato funcional do delegado aceite a azeda glória  de se tornar  o “pop star” duma desgraça.


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