UM INQUÉRITO POLICIAL PÚBLICO
João
Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com
A medida do sucesso da
investigação criminal é o sigilo. É no intervalo silencioso dos protestos e dos
aplausos que a investigação respira e toma o caminho da verdade. Sem influências
externas, imunizada contra o “olho por olho, dente por dente”, que se esconde
num eufemismo chamado “clamor por justiça”.
Não é essa regra, escrita no
artigo 20 do Código de Processo Penal, que está presidindo o inquérito
policial na investigação das
responsabilidades criminais pela morte de mais de duzentas pessoas na boate
Kiss.
Nunca, em sua história,
Santa Maria viu tanta gente falando idiomas diversos, tantos veículos de
comunicação, tantas emissoras de televisão e rádio, microfones, câmeras e potentes
máquinas fotográficas, levando imagens até o outro lado do mar. E tanta
disposição de delegados de polícia para falarem, ao vivo e a cores, sobre seus
trabalhos na condução do inquérito.
Os superiores do delegado
regional de polícia podem tê-lo exposto à maledicência, quando o transformaram
em ator principal, entregando o papel de coadjuvante ao delegado investido da
competência para presidir inquéritos policiais, quando não com a atribuição
específica de apurar homicídios. Quem olha de fora, e não entende essa manobra,
pensa que o delegado regional nunca tivera essa oportunidade na sua vida, de
aparecer em toda a mídia, local, regional, estadual, nacional e até
internacional. Por isso, teria transformado um ato rotineiro, burocrático,
sigiloso por ordem do art. 20 do Código de Processo Penal e atrelado às
técnicas de investigação, em espetáculo de mídia.
E mais, se colhe também a
impressão de que os acontecimentos, rendendo reportagens, entrevistas, “flashes”,
e alguns segundos de câmeras, não permitem perder a ocasião. Antes que a mídia
busque outros rumos, outras dores, outras tragédias, escândalos e emoções, como
a anunciada renúncia do papa, é melhor aproveitar.
Dentro desse espetáculo em
que foi transformado o inquérito policial, chegou-se a cogitar de uma segunda
reprodução simulada dos fatos, dessa vez com a participação de sobreviventes da
tragédia. Especialistas se manifestaram contra o ato, popularmente conhecido
como “reconstituição”. Os personagens poderiam reviver a dor, a angústia, a
sufocação, a fuga desesperada, talvez o remorso de terem fugido para a vida,
pisoteando cadáveres, pessoas agonizantes, gente ferida estendendo os braços,
pedindo socorro.
Por outro lado, usar
“figurantes” e sobreviventes voluntários no ato não terá efeitos práticos: o
espectro polivalente do testemunho esboroa qualquer convicção.
Para quem não sabe, a
reprodução simulada dos fatos, prevista no artigo 7º do Código de Processo
Penal, é uma faculdade, e não um ato necessário na investigação criminal. É um
“plus”, que o bom senso dispensaria, no caso da mortandade na boate Kiss, em
respeito ao tamanho das feridas, à imensidão da dor, à tensão social.
Todavia, pelo visto há um o
“ego” superior, bem maior do que o bom senso: danem-se os personagens do triste
espetáculo. Imagina-se que nos supedâneos superiores haja alguém, que nada
entende de investigação, querendo limpar a barra com povo e, mediante uma ordem
marcial, esteja botando tudo nos ombros, digamos, do delegado regional. Mas
ninguém acredita que o recato funcional do delegado aceite a azeda glória de se tornar
o “pop star” duma desgraça.
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