quarta-feira, 24 de abril de 2013


DE  DE BOATOS,  PECADOS E FICÇÕES JURÍDICAS

João Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com

Em espaço ocupado nas páginas de  A Razão, a jornalista Celina Fleig Mayer esconjura essa espécie de obsessão que se alastra pela cidade, essa quase ganância em busca de mais culpados para ocuparem os lugares ainda vazios do banco dos réus: tudo por conta do incêndio na boate Kiss.
O ponto de partida para a manifestação da jornalista foi a  publicação do livro do padre Lauro Trevisan, que agora está contabilizando, além dos direitos autorais, um depoimento para a polícia.
Conforme Celina, uma enfermeira teria dito, de modo categórico, que alguém, não identificado, lhe havia passado a informação de que, entre os corpos amontoados no caminhão que carregava os mortos, havia gente viva.
O número de "quês", necessários para a construção da frase, além dos tropeções da língua, revela que se trata de boato, desses boatos sem origem, sem carimbo, que passam de boca e boca: diz-que-diz. Poder-se-ia deduzir então que a intimação do padre tivesse ligação com esses boatos, pois o referido clérigo teria relatado em seu livro a “descida” de alguns jovens, “com a permissão do Pai”, para se misturarem aos corpos sem vida.
A suposição era de que a polícia pretendia chegar à ponta da meada, queria ver onde iria dar esse diz-que-diz, responsável pelas insônias das noites sem fim dos familiares das vítimas. Insatisfeitos com os indiciamentos e, pior ainda, com os arquivamentos, eles passaram a se mobilizar como um quarto poder, que não tolera o revés e diante do qual nenhuma porta se fecha. E transformaram a busca por culpados num canto de sereia, que seduz a polícia.
Mas, naquele corre-corre, naquele desespero, naquela luta contra a morte, haveria pessoas suficientemente qualificadas, e em número também suficiente para auscultarem, um por um, todos os corpos, em busca de sinais vitais? Haveria gente suficiente para salvar os que ainda estavam, com toda a certeza, vivos, procurando sair de dentro daquele inferno de fogo e fumaça venenosa, e ao mesmo tempo se dedicar aos cuidados daqueles que já não apresentavam sinal algum de vida?
E o padre poderia esclarecer alguma coisa a respeito?
Ou simplesmente queria a polícia saber de que fonte foi ele tirar a inspiração para dizer que o “Pai” permitiu a volta de alguns à vida? Na condição de representante de Deus, seria ele dotado do privilégio de contato direto com o Todo Poderoso?
Qualquer pessoa, medianamente sensata, não veria nos escritos do padre senão uma divagação descompromissada, algo tipo assim... qualquer coisa para chegar às setenta páginas do livrinho. Nada mais que isso. Algum deus permitiria vida por alguns minutos, talvez nem isso, para nada? Só para complicar a cabeça das pessoas? Para dar trabalho à polícia?
Bom, se não fosse para chegar à fonte desses boatos, por que haveria a polícia de ouvir o padre? A alguém poderia  ocorrer que a polícia agora, além de crimes, investiga também pecados. E, para isso, ninguém melhor que um padre...
Mas, falar em falsidade ideológica, equiparar um livro a “documento de conteúdo obrigatoriamente veraz, para efeitos jurídicos”, é ir muito além das núvens, é passar de viagem pela  “porta do céu” do padre Lauro. Sem chance alguma de obter a permissão do “Pai” para retornar a essa boa vida na terra.


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