DE DE BOATOS, PECADOS E
FICÇÕES JURÍDICAS
João Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com
Em espaço ocupado nas páginas de A
Razão, a jornalista Celina Fleig Mayer esconjura essa espécie de obsessão que
se alastra pela cidade, essa quase ganância em busca de mais culpados para
ocuparem os lugares ainda vazios do banco dos réus: tudo por conta do incêndio
na boate Kiss.
O ponto de partida para a manifestação da
jornalista foi a publicação do livro do padre Lauro Trevisan, que agora
está contabilizando, além dos direitos autorais, um depoimento para a polícia.
Conforme Celina, uma enfermeira teria
dito, de modo categórico, que alguém, não identificado, lhe havia passado a
informação de que, entre os corpos amontoados no caminhão que carregava os
mortos, havia gente viva.
O número de "quês", necessários
para a construção da frase, além dos tropeções da língua, revela que se trata
de boato, desses boatos sem origem, sem carimbo, que passam de boca e boca:
diz-que-diz. Poder-se-ia deduzir então que a intimação do padre tivesse ligação
com esses boatos, pois o referido clérigo teria relatado em seu livro a
“descida” de alguns jovens, “com a permissão do Pai”, para se misturarem aos
corpos sem vida.
A suposição era de que a polícia pretendia
chegar à ponta da meada, queria ver onde iria dar esse diz-que-diz, responsável
pelas insônias das noites sem fim dos familiares das vítimas. Insatisfeitos com
os indiciamentos e, pior ainda, com os arquivamentos, eles passaram a se
mobilizar como um quarto poder, que não tolera o revés e diante do qual nenhuma
porta se fecha. E transformaram a busca por culpados num canto de sereia, que
seduz a polícia.
Mas, naquele corre-corre, naquele
desespero, naquela luta contra a morte, haveria pessoas suficientemente
qualificadas, e em número também suficiente para auscultarem, um por um, todos
os corpos, em busca de sinais vitais? Haveria gente suficiente para salvar os
que ainda estavam, com toda a certeza, vivos, procurando sair de dentro daquele
inferno de fogo e fumaça venenosa, e ao mesmo tempo se dedicar aos cuidados
daqueles que já não apresentavam sinal algum de vida?
E o padre poderia esclarecer alguma coisa
a respeito?
Ou simplesmente queria a polícia saber de
que fonte foi ele tirar a inspiração para dizer que o “Pai” permitiu a volta de
alguns à vida? Na condição de representante de Deus, seria ele dotado do privilégio
de contato direto com o Todo Poderoso?
Qualquer pessoa, medianamente sensata, não
veria nos escritos do padre senão uma divagação descompromissada, algo tipo
assim... qualquer coisa para chegar às setenta páginas do livrinho. Nada mais
que isso. Algum deus permitiria vida por alguns minutos, talvez nem isso, para
nada? Só para complicar a cabeça das pessoas? Para dar trabalho à polícia?
Bom, se não fosse para chegar à fonte
desses boatos, por que haveria a polícia de ouvir o padre? A alguém poderia
ocorrer que a polícia agora, além de crimes, investiga também pecados. E,
para isso, ninguém melhor que um padre...
Mas, falar em falsidade ideológica,
equiparar um livro a “documento de conteúdo obrigatoriamente veraz, para
efeitos jurídicos”, é ir muito além das núvens, é passar de viagem pela
“porta do céu” do padre Lauro. Sem chance alguma de obter a permissão do
“Pai” para retornar a essa boa vida na terra.
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