QUANDO AS LÁGRIMAS NÃO PERMITEM VER A
LEI
João
Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com
Não há de ter sido por falta de conhecimentos do Direito que o estrepitoso
inquérito policial sobre o incêndio da boate Kiss de Santa Maria saiu
chamuscado com barbeiragens jurídicas.
Senão, vejamos. A primeira “conditio
sine qua non” para ser delegado de polícia é a apresentação de um diplominha,
onde se lê Bacharel em Ciências Jurídicas
e Sociais. O caso de Santa Maria ainda está condimentado com a
circunstância de ser professor, numa Faculdade de Direito local, o delegado que
coordenou o mencionado inquérito.
As coisas estavam no prumo, até que o delegado
abandonou a receita legal e resolveu cozinhar por conta própria. Semeando
entrevistas por onde passava, talvez não lhe tenha sobrado tempo para uma
olhadela na jurisprudência que interpreta a questão do foro privilegiado.
Então, “convidou” o prefeito do município para depor.
Não, não fiquem aí, pensando que
“convite” é sinônimo de intimação. Nem “intimação” existe na fase do inquérito
policial. E sabem porque? Porque intimação é apenas a ciência que se dá às
partes, ou a uma delas, de algum ato que tenha sido praticado ou que será
praticado no processo. O inquérito é um procedimento unilateral, sem
contraditório, sem recursos. E não há partes, em sentido técnico, na fase
policial. Então, inquérito não expede intimação.
O que a polícia fez foi uma notificação
ao prefeito, sem lhe dizer se ele era investigado ou testemunha. Notificação,
sim, é uma ordem para que alguém faça ou se abstenha de fazer alguma coisa.
Um ato ilegal, por dois motivos. O
prefeito goza da prerrogativa de ajustar, com a autoridade que tiver a
necessidade de ouví-lo, o dia, a hora e o local (art. 221 do CPP). Outro
motivo, segundo os figurinos de jurisprudência: a polícia não tem competência
para interrogar pessoas detentoras de foro privilegiado, com o fim de
investigá-las.
Ao
“responsabilizar” o prefeito, no final do inquérito, por “improbidade
administrativa” e homicídio culposo, depois de lhe haver armado uma ratoeira
com o nome de “convite”, a polícia cometeu outra ilegalidade: não é de sua
competência também a investigação dos casos (nem crimes são) da denominada
improbidade administrativa, de quem quer que seja. Nem do lixeiro da
prefeitura.
O inquérito, que investiga incêndio,
homicídios e lesões, fez uma conjunção infeliz com improbidade administrativa:
o único fogo que pode implicar improbidade administrativa é o que queima
dinheiro público.
E aí a polícia mandou uma cópia do
inquérito para o Tribunal de Justiça, o órgão competente para julgar “infrações
penais” atribuídas a prefeitos.
Mais outra barbeiragem: o Tribunal de
Justiça também não é competente para julgar “improbidade administrativa”. A
competência originária é do juízo da comarca local.
E para que nada faltasse no caldo dos
disparates jurídicos, a polícia ainda indiciou os bombeiros, que estão sujeitos
à jurisdição especial.
Bem, resumindo, ficou assim: para julgar
uns, o competente é o juiz de primeiro grau, para julgar outros, o Tribunal do
Júri, sobrando réus também para a Corte Militar e o Tribunal de Justiça.
Se a polícia tivesse conduzido o inquérito dentro de suas estritas
funções, não teria gerado os mais variados estados de insatisfação com essa salada
processual, que está sujeita ao azedume dos conflitos de competência.
A “responsabilização” do prefeito por
“improbidade administrativa” e homicídio culposo, empurrou para festejos e
protestos a companheirada do Tarso Genro. Este tem ‘know how”, sabe como usar a
polícia para neutralizar adversários, sabe como acolher criminoso italiano e
expulsar inocentes boxeadores cubanos.
Qual seria mesmo a missão da polícia, no
caso da Kiss?
Ou o delegado, que confessou, numa
crônica encharcada de prantos e suspiros, estar chorando por sua prima e por
seus alunos, mortos no incêndio, teria esquecido o beabá do Direito, envolvido
que estava com suas lágrimas?
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