terça-feira, 2 de abril de 2013


QUANDO AS LÁGRIMAS NÃO PERMITEM VER A LEI

João Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com

Não há de ter sido  por falta de conhecimentos do Direito que o estrepitoso inquérito policial sobre o incêndio da boate Kiss de Santa Maria saiu chamuscado com  barbeiragens jurídicas.
Senão, vejamos. A primeira “conditio sine qua non” para ser delegado de polícia é a apresentação de um diplominha, onde se lê Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. O caso de Santa Maria ainda está condimentado com a circunstância de ser professor, numa Faculdade de Direito local, o delegado que coordenou o mencionado inquérito.
As coisas  estavam no prumo, até que o delegado abandonou a receita legal e resolveu cozinhar por conta própria. Semeando entrevistas por onde passava, talvez não lhe tenha sobrado tempo para uma olhadela na jurisprudência que interpreta a questão do foro privilegiado. Então, “convidou” o prefeito do município para depor.
Não, não fiquem aí, pensando que “convite” é sinônimo de intimação. Nem “intimação” existe na fase do inquérito policial. E sabem porque? Porque intimação é apenas a ciência que se dá às partes, ou a uma delas, de algum ato que tenha sido praticado ou que será praticado no processo. O inquérito é um procedimento unilateral, sem contraditório, sem recursos. E não há partes, em sentido técnico, na fase policial. Então, inquérito não expede intimação.
O que a polícia fez foi uma notificação ao prefeito, sem lhe dizer se ele era investigado ou testemunha. Notificação, sim, é uma ordem para que alguém faça ou se abstenha de fazer alguma coisa.
Um ato ilegal, por dois motivos. O prefeito goza da prerrogativa de ajustar, com a autoridade que tiver a necessidade de ouví-lo, o dia, a hora e o local (art. 221 do CPP). Outro motivo, segundo os figurinos de jurisprudência: a polícia não tem competência para interrogar pessoas detentoras de foro privilegiado, com o fim de investigá-las.
 Ao “responsabilizar” o prefeito, no final do inquérito, por “improbidade administrativa” e homicídio culposo, depois de lhe haver armado uma ratoeira com o nome de “convite”, a polícia cometeu outra ilegalidade: não é de sua competência também a investigação dos casos (nem crimes são) da denominada improbidade administrativa, de quem quer que seja. Nem do lixeiro da prefeitura.
O inquérito, que investiga incêndio, homicídios e lesões, fez uma conjunção infeliz com improbidade administrativa: o único fogo que pode implicar improbidade administrativa é o que queima dinheiro público.
E aí a polícia mandou uma cópia do inquérito para o Tribunal de Justiça, o órgão competente para julgar “infrações penais” atribuídas a prefeitos.
Mais outra barbeiragem: o Tribunal de Justiça também não é competente para julgar “improbidade administrativa”. A competência originária é do juízo da comarca local.
E para que nada faltasse no caldo dos disparates jurídicos, a polícia ainda indiciou os bombeiros, que estão sujeitos à jurisdição especial.
Bem, resumindo, ficou assim: para julgar uns, o competente é o juiz de primeiro grau, para julgar outros, o Tribunal do Júri, sobrando réus também para a Corte Militar e o Tribunal de Justiça.
Se a polícia tivesse  conduzido o inquérito dentro de suas estritas funções, não teria gerado os mais variados estados de insatisfação com essa salada processual, que está sujeita ao azedume dos conflitos de competência.
A “responsabilização” do prefeito por “improbidade administrativa” e homicídio culposo, empurrou para festejos e protestos a companheirada do Tarso Genro. Este tem ‘know how”, sabe como usar a polícia para neutralizar adversários, sabe como acolher criminoso italiano e expulsar inocentes boxeadores cubanos.
Qual seria mesmo a missão da polícia, no caso da Kiss?
Ou o delegado, que confessou, numa crônica encharcada de prantos e suspiros, estar chorando por sua prima e por seus alunos, mortos no incêndio, teria esquecido o beabá do Direito, envolvido que estava com suas lágrimas?

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