segunda-feira, 8 de abril de 2013


RAZÃO E CORAÇÃO

João Eichbaum

O incêndio da boate Kiss reduziu o tamanho de Santa Maria, fez dela uma cidade pequena, quase uma aldeia. Explico. Segundo se divulgou, estavam cerca de novecentas pessoas no local, quando irrompeu o fogo, seguido da cortina de fumaça.
Dessas, 241 morreram. Algumas ainda estão hospitalizadas, várias, sob tratamento. Mas nenhum dos sobreviventes, certamente, escapou do trauma. A fuga do local, a busca pela vida, o pânico, o eco dos brados por socorro, os corpos empilhados, o desespero, enfim, tudo assume a dimensão de um pesadelo, cinzela um quadro de terror que, para muitos, será levado pela vida afora.
Multiplique-se esse número de pessoas atingidas pelo número de parentes, amigos, vizinhos, conhecidos, colegas de trabalho ou de estudo de cada um. Associe-se  essa multidão de pessoas atingidas psicologicamente de modo direto à dimensão que a tragédia tomou através da imprensa, levando-a para dentro dos lares no mundo inteiro.
Como poderia algum morador de Santa Maria ficar de fora desse quadro de dor? Como poderia alguém ficar indiferente? Como poderia alguém aceitar com naturalidade e frieza tantas mortes e tantas desgraças, atribuindo-as ao acaso, ao destino, às divindades, seja ao que for, sem sentir pelo menos uma ponta de revolta?
Não é preciso ser especialista em seres humanos para se chegar à conclusão de que ninguém, nenhum morador de Santa Maria, em pleno uso de suas faculdades mentais, ficou de fora, ficou como mero expectador bocejando na frente da televisão. E passa a léguas do inconcebível também a suposição de que ninguém formou a própria opinião, o próprio juízo, tirando conclusões acerca das responsabilidades pelo trágico evento.
Todas essas certezas agora geram  perplexidade, quando se ouvem operadores do Direito do município de Santa Maria, especialmente membros do Ministério Público e magistrados, afirmarem que o julgamento dos réus denunciados como culpados pela tragédia deve ser realizado na comarca local.
Que um leigo diga isso, se tolera, porque desconhece o artigo 424 do Código de Processo Penal.  Mas, para que de agora em diante nem os leigos possam se sentir seguros, apregoando que o julgamento “deverá ser realizado em Santa Maria”, noticio que o referido dispositivo legal permite o desaforamento “se o interesse da ordem pública reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do Júri ou segurança pessoal do réu”. Desaforamento é a transferência do julgamento de uma comarca para outra.
O próprio magistrado que decretou a prisão preventiva dos réus já deu o primeiro passo para que haja desaforamento, ao lhes negar a liberdade sob o fundamento de que “a ordem pública” o exigia.
Afora isso, as várias manifestações públicas que, se não forem de  natureza política, retratam sentimentos de revolta, ao clamarem por “justiça”, fomentam exatamente o espírito da lei.
Justiça e sentimento são dois ingredientes que se repelem. Um é produto da razão. O outro, “do coração”. Misturados, produzem vingança. Nada menos.


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