A FÉ QUE REMOVE A DOR
João Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com
“Seu” Vlademir não sorri. Mas, também não
chora. A vida não lhe dá motivos para sorrir. A fé não lhe dá motivos para
chorar. As asperezas da vida, que o semblante dele não esconde, não o dominam
de um todo, porque nele há um lugar reservado para a serenidade. É com essa
serenidade que ele conta, para aparar os golpes da vida: a serenidade que nasce
da fé.
“Seu” Vlademir perdeu duas filhas no
incêndio da boate Kiss de Santa Maria. Teria motivos de sobra para se revoltar
contra o mundo, contra Deus e contra os homens. Contra Deus, que só distribui
fichas de complacência para quem não merece, que dá muito para poucos e
pouco para muitos; contra os homens que só querem dinheiro, contra os homens
que só querem poder, contra os homens que não fazem justiça. Teria motivos para
sair à ruas, deteriorando a paz pública, engrossando o coro dos desesperados,
dos que se divorciaram dos sorrisos, dos que se sentem distantes do resto da
humanidade, dos que andam à procura de solidariedade para sua causa.
Mas, não. “Seu” Vlademir não se revolta.
Antes, agradece a Deus, por estar bem. E “estar bem”, para esse calejado
jardineiro, é viver com a família naquela casa de madeira desbotada, cheia de
frestas, por onde espia o sol nas tardes de calor, por onde entram as asas do
vento norte, trazendo sua modorra, em seus dias de loucura, e onde assobia sem
piedade o frio do minuano. Ele “está bem”, naquele ermo de Itaara,
numa clareira aberta no meio da vegetação espessa, espreitada por árvores
gigantes.
Ao contrário dos que bramem contra os
estragos dilacerantes e a falta de lógica da morte, “seu” Vlademir diz que a
perda das filhas contribuiu para a união da família e por isso agradece a Deus.
Agora ele e sua mulher, dona Iracema, têm na sua companhia as netas, Jennifer e
Eduarda, que uma fumaça assassina deixou sem mãe.
Suas filhas não eram estudantes
universitárias, não disputavam o espaço social, e não acalentavam sonhos muito
melhores dos que a vida lhes havia oferecido até ali: o futuro não lhes acenava
com um diploma de curso superior. Morreram na boate Kiss porque o acaso não
escolhe suas vítimas. Por ser acaso, não planeja, não organiza, não distingue
classes, nem categorias sociais, não seleciona currículos. O que as levou para
a última balada na boate, entre elegantes jovens universitários, mestres ou
doutores, foi exatamente o acaso, que não agenda encontros com ninguém, não
chega antes, nem depois, e anda sem rumo, mas sempre acompanhado pelo “de
repente”.
Cecília não tinha currículo. Dela só
constava no jornal que era natural de Santa Maria, tinha 23 anos, e morava com
a irmã, Francielle, em Itaara. De Francielle, o jornal dizia um pouco mais: que
tinha 26 anos, trabalhava num estúdio de pilates e morava com a filha, Jennifer,
a irmã e a sobrinha.
Ignotas, nenhuma delas deixará a lembrança
do seu charme e da sua beleza, atraindo o olhar triste do viandante na rua dos
Andradas. Delas nada dirão as ruínas assassinas da boate Kiss.
Mas, “seu” Vlademir não se importa. Para
ele, a carne não tem valor. O que conta é o espírito. Por isso ele não anda à
caça de culpados, nem de compensações.
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