O CLAMOR
João Eichbaum
O Tribunal de Justiça pediu e levou.
Permitiu que o inquérito policial se transformasse em espetáculo de mídia, e
agora está colhendo os frutos: a liberdade dos réus, no caso da boate Kiss,
atiçou a fúria dos familiares e amigos das vítimas.
Não há erro público que escape ao povo. O
erro público agride a população e esta, atingida, tem que responder na sua
linguagem, o clamor.
A prisão temporária, decretada no início
do inquérito, que se popularizou por permissão do Judiciário, tresandava a
sentimento, a submissão da Justiça ao estrépito social, a resposta provisória
ao clamor por “Justiça”.
Esse tipo de prisão, de escancarada
inconstitucionalidade, não resiste a qualquer fiapo de argumento jurídico. É um
instituto repelido pelo bom senso e encarado com extrema reserva pelo
verdadeiro jurista. O aplicador da lei que o não desbastar do caráter
marcantemente inquisitório, burilando-o com a racionalidade e o equilíbrio,
estará agindo na contramão da axiologia jurídica.
O erro do Tribunal de Justiça foi ter
negado o primeiro habeas corpus, ignorando aquilo que qualquer adivinha
de circo sabia, sem ser necessário ler a palma da mão: que a prisão temporária
não passava de falso supedâneo para a prisão preventiva. Se, com mínimos
argumentos jurídicos, a Câmara tivesse demonstrado a ilegalidade do ato
que mandou prender primeiro, para averiguar a culpa depois, teria chamado à
racionalidade os operadores do procedimento. Esses estariam a salvo da pressão
popular, e o inquérito, trabalhado ao ritmo da normalidade, teria sido
conduzido sem os equívocos que desandaram em arquivamentos e diligências
inúteis.
Ao denegar o primeiro habeas corpus, o Tribunal de Justiça injetou nos fragilizados
parentes das vítimas o veneno que corrói o direito de defesa, emprestando força
de lei ao clamor público. A decisão fez adormecer os ódios e passou para o
povo, para os que não sabem que o ordenamento jurídico é movido com
racionalidade e não com sentimento, a impressão de que justiça, vingança e
raiva da morte são sinônimos.
Agora, ao conceder a liberdade dos réus, a
Justiça se enredou na falta de bom senso. É difícil convencer a massa, se
desdizendo: "esqueçam o que eu disse ontem". O povo, embora volúvel,
não aceita a volubilidade. E a decisão do TJ, para o povo, representou
volubilidade e insegurança, porque ressuscitou pesadelos.
Mas, fazendo só agora o que deveria ter
feito desde o primeiro momento, a Câmara Criminal do TJ cavou outro abismo:
o do descrédito na justiça. E o que é pior, alimentado por membros do MP, que
estão acrescentando à lei novos pressupostos para a prisão preventiva: “clamor
social” e “clamor público”.Aliás, o próprio relator do habeas já aludira alhures ao “clamor público”.
O
tempora, o mores! Os
bacharéis esqueceram que o Judiciário existe exatamente para que não se
entreguem os réus ao julgamento da sanha popular. Porque o instrumento da
justiça é a verdade, e não as lágrimas, nem o desespero. E, muito menos, o estrépito
social.
Se assim não for, dispensem-se os juízes.
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