terça-feira, 25 de agosto de 2015

O POETA E O ADORMECEDOR DE BOI
João Eichbaum

Para quem conhece o Direito Penal como ciência, e não como instrumento de favorecimentos pessoais, ou para quem não é analfabeto funcional, salta aos olhos a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06. Em não tipificando tecnicamente uma conduta delituosa, mas impondo penas ao agente, o dispositivo afronta o inc. XXXIX do art. 5º da CF.

Observe-se como está redigido o mencionado artigo 28: Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

No mundo inteiro, desde que o Direito Penal foi adotado como ciência, a tipificação do delito obedece a uma construção verbal “sui generis”: não tem sujeito. Por exemplo: “matar alguém”, define o delito de homicídio. O núcleo da norma penal está no verbo, na ação.

A Lei 11.343 é tormentosamente ambígua: não define como crime a aquisição, a guarda, o depósito e o porte de drogas para uso pessoal da  forma como o faz no capítulo II, do Título IV, onde elenca, segundo o figurino penal, as condutas delituosas. Os crimes, tecnicamente tipificados, estão em capítulo e título diferentes das condutas que supõem a aquisição, a guarda, o depósito e o porte da droga para uso pessoal. 

Quer pela descrição da conduta, quer pelo seu deslocamento no estatuto legal, não se pode tê-la como tipificação de crime. As regras de hermenêutica penal proíbem a interpretação analógica in malam partem.

Sobre essa estranha ou burra forma de legislar, se estabelece, no mínimo, uma pergunta: o que pretendeu o legislador, com tais disparates? Ora, na dúvida, não cabe outra interpretação, senão a favor do réu. E para quem sabe que “não existe crime sem lei, nem pena sem crime” a inconstitucionalidade se desata frente ao inc. XXXIX do art. 5º da CF, que consagra a regra milenar: nullum crimen, nulla poena sine lege.

No entanto, o STF, entre outras, adotou a seguinte decisão do poeta Carlos Ayres Brito: “A punição, na hipótese, é de rigor para salvaguardar a sociedade do mal potencial causado pelo porte de droga, apto a ensejar o incremento do tráfico de entorpecentes, a par de outros delitos associados ao uso indevido da droga. Ademais, deve ser ponderado que o E. Supremo Tribunal Federal, a quem compete o controle de constitucionalidade das normas, em momento algum reconheceu a indigitada inconstitucionalidade, razão pela qual o dispositivo de lei há que ser observado e cumprido.” (STF, RE 635660 SP).

E agora, para a alegria dos traficantes, dos filhos e das amantes de figurões da república, vem o Gilmar Mendes, com aquele jeito de sapo engasgado com batata quente, dizer que a lei é inconstitucional. Para isso, ele esgravata literatura estrangeira em busca de erudição, mói ideias alheias, enrola, faz digressões inúteis, num discurso empolado, tortuoso e prolixo. E acaba legislando, transformando pena em sanção administrativa. Tudo a ver com os habitantes daquele cemitério de humildades, que é o STF.


A diferença entre o Ayres Brito e o Gilmar Mendes está nisso: o primeiro faz poesia, e o outro, canções de ninar bovinos. Mas nenhum deles enxerga o óbvio, que é a burrice do legislador, ferindo o inc. XXXIX do art. 5º da Constituição Federal.

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