quinta-feira, 7 de agosto de 2008

COISAS DA VIDA

O PADRE DA MISSA DAS NOVE
João Eichbaum

Naquele tempo em que a impenitente divisão da sociedade não incluía os miseráveis e os desclassificados, todas as crianças compareciam na missa das nove da catedral de Santa Maria: as ricas, as remediadas e as pobres.
O Padre Azevedo, um jesuíta ossudo, magricela, de tez morena, o rosto sacudido por tiques nervosos, rezava a missa. Ele não fazia sermão porque tinha uma péssima dicção, as palavras lhe saiam pela boca nadando em saliva. Em compensação, era o confessor de todos, inclusive dos padres.
Quem “animava” a missa, sem subir no púlpito, mas caminhando pelo corredor central da catedral, era o Padre Abílio Sponchiado, um astro de espetáculos religiosos. Entusiasmado, sanguíneo, voz tonitruante de orador, ele dominava o espetáculo das manhãs de domingo. Sua voz ecoava pelas naves da catedral e tinha como resposta o silêncio, o silêncio atento e embevecido das crianças e dos poucos adultos que ousavam se misturar com os pequenos. Digo que ousavam, porque o Padre Abílio era direto e sem ressalvas: a missa das nove era a missa das crianças. Claro, eu sei, nem era preciso ser muito inteligente para saber porque alguns adultos a freqüentavam. É porque não tinha sermão, a missa era mais curta e, além disso, mais animada.
E o Padre Abílio, de estola e sobrepeliz, transitava pelo corredor central: ia para a frente, na direção da entrada da catedral, e voltava de costas, sempre falando, num tom de diálogo, fazendo perguntas e respondendo, ao mesmo tempo, em nome das crianças. E entoava cânticos com sua voz de barítono italiano. Atrás dele iam nossas vozes, as vozes do aprisco infantil: “Com minha Mãe estarei”, “Queremos Deus”, “O vinde, vamos todos”, “Virgem Mãe Aparecida”, “Dai-nos a bênção”, para mencionar alguns daqueles cantos que a memória não varreu de vez.
O Padre Abílio era o ídolo das crianças, um ídolo que precedeu os ídolos da televisão de hoje. Mas era ídolo no melhor sentido, no sentido da virtude, da piedade, da felicidade ainda não envenenada pela degradação dos costumes. Era, naqueles tempos sem televisão, uma criatura carismática, dotado de invulgar poder de comunicação. E nós, embevecidos, cantávamos e rezávamos, os olhos fixos nele.. E ele nos pintava as delícias do paraíso, as torturas do inferno, e a amarga expectativa do purgatório, enquanto recolhia o nosso respeito, a nossa angústia, o nosso fascínio pelo mistério.
A catedral de Santa Maria tem, na sua história, a história de muitas crianças. E muitas crianças têm, na sua história, a catedral de Santa Maria, graças à missa das nove.
Mas a missa das nove nunca mais foi a mesma depois que o bispo, não sei por que cargas d’água, transferiu o Padre Abílio para Cachoeira do Sul. Foi como se um silêncio inexplicável do céu tivesse anunciado o fim de uma era. Aquele homem sério e, ao mesmo tempo, brincalhão, uma criatura envolvida com seu próprio destino, foi seduzido pela trajetória lírica da vida de piloto, cursando um “brevet”. Introduzido nas artes de voar, resolveu participar de acrobacias num teco-teco sem segurança.
Foi assim que montou para o povo atônito e boquiaberto de Faxinal do Soturno, numa tarde festiva de domingo, o espetáculo gratuito de sua morte. Sem estola, sem sobrepeliz e sem os cânticos da missa das nove.
(crônica publicada no jornal A Razão, de Santa Maria)

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