terça-feira, 19 de agosto de 2008

COLUNA DO PAULO WAINBERG

crônicas funéreas

A LINHA DO DESCOBRIMENTO
Paulo Wainberg



Quando descobri que não suportava gosto e cheiro de leite era tarde demais. Minha mãe teve que queimar o tapete da sala. Vomitei como gente grande e tinha seis anos.
Quando descobri que as meninas adoravam meu olhar penetrante entrecortado pela fumaça do cigarro era tarde demais. Eu já estava viciado e tinha doze anos.
Quando descobri como foi bom comer a empregada doméstica lá de casa era tarde demais. Peguei “chato”, coçou, ardeu e eu tinha catorze anos.
Estas três descobertas – que considero essenciais na formação de meu caráter – produziram modificações profundas na minha existência embora, no momento, não me lembre de nenhuma.
Praticamente falando, nunca mais bebi ou cheirei leite, fumo até hoje e me cuidei para nunca mais pegar doenças venéreas. Me dei bem nas três.
Não sei se você sabe e se não sabe vai ficar sabendo que a realidade só existe na ficção e que a ficção, por ser ficção, não existe.
Não é uma teoria, meu caro passageiro, é um princípio que, como todo o princípio, não tem fim porque, se tivesse fim, não seria princípio.
Princípio com fim volta ao princípio o que prova, definitivamente, que eternidade não existe porque, ao contrário do que possam imaginar alguns filósofos de resultado, cientistas de ocasião e religiosos materialistas, a eternidade não tem nem princípio nem fim.
É um pensamento mais claro do que o mais claro dos brancos jamais produzidos.
Por causa disso acho que um dos melhores exercícios físicos que se pode praticar, nessa vida sedentária que nos assola, é visitar cemitérios. Além do ar puro, da paisagem bucólica e da vista da cidade, se o cemitério for num morro, você verá velhos conhecidos, antigos parentes e uma infinidade de pessoas que você sequer sabia que tinham nascido e já estão por lá, mortinhas da silva.
Caminhando por alamedas floridas e perfumadas pelos troncos e folhas de ciprestes você perceberá que a paz existe, está ali, ao seu alcance, basta ter um pouco de paciência.
Entre um túmulo e outro, lendo as saudades imorredouras escritas nas lápides – no caso das mais antigas são saudades que já morreram há muito -, observando alguns montinhos de terra aguardando o túmulo, marcadas com plaquetas numeradas ou pequenos lotes de terra com aviso de “reservado”, você compreenderá o motivo pelo qual, no mundo dos negócios, a compra e venda de imóveis cemiteriais é de longe a mais rentável, a única que não sofre com a crise da construção civil.
Acho que é o meu espírito levemente bucólico, mas não gosto de edifícios – cemitérios, com vários andares e área construída imponente, onde os túmulos são enfiados em nichos, nas paredes, para ganhar espaço.
O condomínio vertical dos mortos soa assim, mal, como heresia financeira. Prefiro os ao ar livre, com túmulos horizontais espalhados diretamente sobre a terra, com amplos gramados, monumentos, flores da estação e pedras brancas sobre as lápides.
É mais bonito, agradável de se ver, são cemitérios com poesia, entende?, disfarçando a especulação imobiliária subjacente a cada contrato de compra e venda de um lote.
Outra coisa boa de se fazer em cemitérios é lembrar. Você para diante do túmulo de uma pessoa que, por ouvir falar, você sabe que foi seu bisavô a quem nunca conheceu. Mas do seu avô você lembra e sorri, afetuosamente, recordando quantos presentes ele te deu e como era bom quando ele te pegava no colo. Talvez até uma lágrima escorra, não de saudades dele mas de saudades de você mesmo, da idade que você já teve e das descobertas que você, assim como eu, fez ao longo de sua vida.
Quantas vezes você conversou com uma foto antiga, encravada na pedra, e não obteve resposta?
Mas, passeando no cemitério, a gente conversa com fotografias e pedras, esperando uma resposta, por que será? Mesmo sabendo que ela não virá?
Por isso não acho graça em cremações. Tudo o que lhe restará para uma conversa será uma urna na prateleira de cima, no móvel da televisão e que você nem vê mais, como a gente não costuma ver as coisas que estão sempre diante dos nossos olhos.
Tem outra coisa que nos ocorre, inevitável, quando passeamos em cemitérios: saber que um dia será a nossa vez e tudo o que somos, temos e sentimos terminará ali, emoldurado por uma lápide com foto e saudades imorredouras que morrerão logo ali. E, também é inevitável, tiramos de letra, isso é coisa para depois, quando chegar a hora a gente vê como é que é. E para disfarçar você enfia as mãos nos bolsos ou segura a bolsa com as duas mãos e fica apreciando os passarinhos flibusteiros que por ali voejam qual navios fantasmas.
Aí você sai do cemitério, dá uma gorjeta ao flanelinha que ganha a vida com enterros alheios e volta à vidinha de sempre como se nada tivesse acontecido.
É ou não é?
Aposto que no mundo paralelo que, como se sabe, existe simultaneamente ao nosso, eu gosto de leite, nunca fumei e jamais comi a empregada lá de casa.
Nem fico pensando nesse tipo de coisa.
Lá eu tomo leite adoidado, bem gordo e com nata, as garotas adoram meu olhar penetrante sem fumaça de cigarro e as empregadas domésticas não transmitem chato. Lá eu não vou a cemitérios, não escrevo crônicas, ganho um monte de dinheiro e, quem sabe, até viro senador de preferência, deputado federal, vá lá que seja, ou cantor de ópera, o que seria uma glória.
Você prefere ir ao cemitério em dia de sol ou em dia de chuva?

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