quarta-feira, 6 de agosto de 2008

COLUNA DO PAULO WAINBERG

CRÔNICAS SEBOSAS

FRACASSOS HERÓICOS
Paulo Wainberg






Aparentemente um novo herói brasileiro surge com vigência apenas nas manhãs de domingo. No mais sofistificado e caro esporte de todos, a corrida de Fórmula Um, um novo garoto revela índole de campeão, tantos anos após a morte de Ayrton Senna. Até hoje fomos obrigados a assistir a qualidade notável de Barrichello como motorista, sua vocação para vice de Schumacher, sua falta de aptidão pela ultrapassagem, suas manobras protocalares e sua imensa simpatia graças à qual esgotamos nossas reservas de indulgência, paciência e espírito de compreensão.
Felipe Massa está aí, na ponta dos dedos, pisando fundo, ganhando corridas e botando no ar a música da vitória da Globo abafada pelos sábios ufanismos do locutor oficial.
Dito isto, pouco resta a dizer. Terminada a corrida vai-se caminhar, correr, ler o jornal, dormir mais um pouco, fazer um churrasco e esperar o futebol.
Ou outras coisas.
Devia haver um momento na vida de todos nós para o auto perdão.
É que me dei conta que passo a vida inteira desculpando, perdoando, compreendendo, condescendendo, deixando para lá, esquecendo, sublimando e aceitando o erro, a falha, a falta, a desconsideração, a traição, a mentira, a fraqueza, a desistência, a incompetência e o fracasso... dos outros e quando chega a minha vez sou duro e implacável, simplesmente não me perdôo nem me desfaço das minhas culpas.
Não é um absurdo?
Por que até hoje não me perdôo de ter participado de uma matança de gatinhos recém-nascidos que a dona não queria ter em casa? Lembro e quase choro quando, de cima da ponte, o primeiro gatinho foi jogado na água, lembro das patinhas dele balançando, do desespero do bichinho. Lembro que disse ao meu amigo, que tinha me convidado para a missão, que eu não ia continuar, que queria devolver os gatinhos à dona e ele me disse que tinha ganho uma grana e que ia matar todos. Lembro que fui embora chorando, a imagem do afogamento me perseguiu por algum tempo, muito tempo, até hoje me persegue. E eu tinha oito anos de idade.
Todas as vezes que menti, que não fiz, que deixei para lá, que fracassei, que errei feio, que ofendi, que machuquei, que enganei, que falhei, por que não é possível me perdoar?
Deve haver um mecanismo psíquico que permita isso e que está bloqueado por algum outro mecanismo psíquico impiedoso, industrialmente operando na produção de culpas e intransigências comigo mesmo.
Você provavelmente não é diferente, somos pessoas de bom coração e estamos prontos a tolerar a arrogância alheia, os deslizes, as falhas de caráter, concordamos que errar é humano, vá lá que seja, ele é assim mas tem seu lado bom, no fundo, no fundo ela é uma boa pessoa.
E quando chega a nossa vez, às três horas da madrugada, acordando bruscamente e não perdendo totalmente o sono. A casa está escura, todos dormem e os pensamentos aparecem, de mansinho, como um enxame de ratos deslizantes e sorrateiros. Os primeiros espreitam, avaliam o território, dão passos cautelosos e, certos de que não há perigo, liberam a manada e atacam, mordendo nossa alma sem nenhum dó, esfrangalhando nossos nervos e nossa auto-estima, arrepiando nossa pele e impondo o desejo de ser riscado da agenda, apagado do celular, excluído do CPF, eliminado da existência ou, vá lá que seja e no mínimo, perder completamente a memória.
Você e eu sabemos o que vai ser o dia seguinte, as olheiras e o cansaço e a certeza de que vai dar tudo errado.
Agora imagine que, num certo momento de um certo dia você para o que está fazendo e percebe que está recheado de boa vontade para consigo e erro a erro, pecado a pecado, mentira a mentira, fracasso a fracasso, você se perdoa.
Você conversa com você e se desculpa por ter deixado sua prima esperando para ir ao cinema, por ter traído sua mulher ou seu marido num momento dramático qualquer. Você se pede perdão por ter mentido ao seu amigo e... perdoa. Você lembra daquela vez, quando todos acreditavam que você estava trabalhando e você passava os dias em cabarés e... se desculpa. Você se perdoa por nunca ter devolvido um livro, por ter cantado a mulher de um conhecido, por ter desejado transar com um sobrinho, por ter bolinado uma empregada doméstica, por não ter pago um empréstimo, por ter tomado um porre e vomitado no decote da miss Brasil, por ter fugido da briga, por ter dado num matinho, por ter transado com o vizinho na véspera do casamento, por nunca ter tido filhos, por não ter cuidado bem dos que teve, por ter brigado com seus pais, você finalmente se auto indulta, uma anistia ampla e renovadora que é quando você aceita que, como todos os outros, você é humano e também erra.
Se acontecesse isso você (e eu) viveria os dias seguintes como um recém-renascido, apto a agir comme il faut, pronto para, se quiser, corrigir os antigos erros e para os novos que cometerá, mas com o espírito em paz.
Acho que cada um de nós pode ser um herói de si mesmo, se abandonarmos a ridícula idéia de termos de ser um herói para os outros.
Se isso acontecesse os heróis por acaso estariam postos nas suas legítimas dimensões, heróis de feitos e não da vida, heróis de façanhas e não do dia a dia.
Olha, vou te dizer uma coisa, presta bem a atenção porque não vou repetir: quem não se perdoa não perdoa ninguém.
E não conheço um único ser humano que se tenha perdoado, que não carrega cada culpinha, culpa ou culpão sobre cada pedacinho do corpo, do dia que nasce ao dia que morre.
Talvez a impossibilidade de perdoar-se seja a definitiva tragédia da vida humana e explica a razão pela qual tanta gente espera e busca o perdão apenas depois da morte.
Ruim isso, é ou não é?

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