terça-feira, 26 de janeiro de 2010

NÓS, PRIMATAS

FOI POR ISSO QUE OS HOMENS INVENTARAM DEUS...

João Eichbaum

Não consegui ler o texto, mas vi a chamada na Internet que dizia mais ou menos assim: “escritor diz que a catástrofe do Haiti parece a prova de que Deus não existe”.
O tema da religião, em ocasiões como essa, não pode ficar fora de foco e instiga pensadores como Janer Cristaldo que o abordou na excelente crônica “DEUS POUPA CRUZ MAS MATA SANTA”.
Para quem não admite a existência de qualquer divindade, o que aconteceu no Haiti não passou de um fenômeno da natureza, e ponto final. Para a natureza não existem igrejas, padres, arcebispos, irmãs de arcebispo, homens bons, homens maus, ateus, crentes, etc. etc., pois é tudo uma coisa só.
Mas, os crentes, os que pensam e estão convictos de que há uma divindade que criou e governa o mundo, ah, esses devem muitas explicações, no mínimo para si mesmos, e não podem deixar o seu deus fora disso, sob pena de lhe atribuírem uma olímpica indiferença.
Ora, se criou o mundo e colocou frágeis, mortais e indefesas criaturas sobre a face da terra, porque essa divindade resolveu dotar a natureza de tamanha força, de tanto poder destruidor? Para se divertir com a desgraça, para extravasar sadismo? Porque essa divindade não aceita as orações dos bons, dos padres, bispos, arcebispos, cardeais e papas e usa sua indiferença destruidora contra todos, indiscriminadamente?
Muita coisa se pode questionar sobre essa divindade criada pelo homem, chamada de Alá pelos muçulmanos e de Deus, pelos judeus e cristãos. A partir da própria “criação” do paraíso terrestre, estorinha contada pela Bíblia, onde “Deus” teria estabelecido a “árvore do bem e do mal”, como teste do comportamento e, sobretudo, da subserviência dos seres humanos, sabendo que tais seres, fracos, despreparados, curiosos, inevitavelmente seriam traídos por tais fraquezas. Depois, outros acessos de fúria desse “Deus”, como o dilúvio, a destruição de Sodoma e Gomorra, o envio do próprio filho para ser crucificado, esquecendo seus criadores de que ele seria onisciente. Enfim, tudo o que se diz de Deus ou Alá, além de desrespeitar própria concepção de divindade, que implica perfeição, subestima a inteligência de quem só lida com a lógica.
Por outro lado, a evolução do ser humano, esse ente que até hoje não conseguiu se despir inteiramente de sua animalidade original, está muito mais presente no dia a dia, na vida de todos, do que qualquer mostra de divindade. No Haiti, por exemplo. Deparei com um flagrante transmitido pela TV, que repugna a quem o encara com racionalidade. Dois jovens estendidos no meio da rua, um para cada lado, ambos feridos a bala por policiais, porque se lhes atribuía o “saque” de sacos de arroz. Um deles morreu logo depois.
Ora, se sabe que a fome se alastra no Haiti, faltam gêneros alimentícios, falta água, faltam tetos, os cadáveres se amontoam, o ar está emprestado como o cheiro da decomposição dos corpos. E a polícia agindo, como se tudo estivesse em ordem. Pior do que isso: ferindo mortalmente a quem se apodera de um saco de arroz, para matar a fome sua e de sua família.
É o império do primata, puramente animal, porque não se concebe que, no ordenamento jurídico do Haiti esteja ausente a milenar figura do furto famélico, que é a subtração de comida para matar a fome.
Não é preciso ser sábio, nem muito inteligente, para concluir que impera no Haiti, nessa hora, uma loucura coletiva, imposta pela dor, pela perda, pelo desespero, pelo desamparo total, pela fome, hora em que a animalidade pontifica, o homem mostra o que ele realmente é.
Como nunca, nessa hora, na ausência redentora de qualquer divindade, soa incontestavelmente verdadeiro o pensamento do escritor português Rogério de Freitas: “foi por isso que os homens inventaram Deus, para nos compensar de uma dignidade que nós não alcançamos.”

2 comentários:

Nubia Graziela disse...

Você sempre se "questionando" sobre o fato dos "crentes" imaginarem um Deus que resolve tudo na maneira dele, mas não é bem assim não! Existem credos em que precisam serem "estudados" para "ver e crer" e mesmo assim não são aprovados porque o "Deus" existe dentro de si mesmo, cada um cria o seu próprio "Deus". Bom na realidade, a religião não tem nada haver com o que aconteceu no Haiti e concordo com vc neste ponto!!!

rogerio disse...

Creio que o problema não é a existência ou não de um Deus, mas sim o que os homens querem que este deus seja.