FELLINI & BERLUSCONI
Nas postrimerias do século passado, comentei este estranho poder da arte, que absolve todas as transgressões. Falava de Lolita. Meio século depois de publicado, o romance conserva seu potencial subversivo. Este vigor não decorre da obra em si. Mas da oposição a uma época que, de repente, parece ter optado pela hipocrisia e conservadorismo. Com seu romance, Nabokov imortalizou a personagem da adolescente sensual, que desde há muito tem perturbado homens maduros.
Para começar, foram as prediletas de Lewis Carrol, não por acaso um escritor que cultivou o gênero infanto-juvenil. Thomas Mann, por sua vez, criou uma versão masculina da adolescência erótica, com Tadzio, em Morte em Veneza, novela levada ao cinema por Visconti. Tadzio tem quatorze anos e espicaça o desejo do senil Aschenbach. Lolita tem doze. Wilhelm von Gloenden, em Taormina, fotografa adolescentes nus com um realismo que Visconti jamais ousaria. Segundo as más línguas, a fama dos meninos de Von Gloenden teriam feito até mesmo Nietzsche tomar o rumo da Sicília.
Tanto os livros de Mann e Nabokov, como os filmes a partir deles gerados, marcaram a sensibilidade de gerações. Mas vá um comum mortal assumir as preferências de Aschenbach ou Humbert Humbert. Será execrado como monstro pela mesma sociedade que aplaudiu os livros e os filmes. Com restrições, é verdade. Se Mann não teve maiores problemas com a censura, Nabokov teve não poucas dificuldades para editar seu livro. Mas, apesar do moralismo contemporâneo, a obra aí está. Em 2003, com uma tiragem de um milhão e cem mil exemplares, Lolita foi distribuída pela Folha de São Paulo aos compradores e assinantes do jornal. De graça.
As prostitutas sempre foram cantadas, tanto na literatura como na pintura ou na música. Boule de Suif, de Maupassant, até hoje nos encanta, foi inclusive glosada por Chico Buarque em Geni e o zepelim. Quem não se fascina pelas prostitutas de Iama, de Kuprin? Ou pela Sonia Siemionova, de Crime e Castigo? Ou pela Alejandra Vidal Olmos, de Ernesto Sábato? Quem não se enternece com a personagem interpretada por Shirley MacLaine, em Irma, la douce, de Billy Wilder? Quem não lembra de Adriana, em La Romana, de Alberto Moravia, novela levada ao cinema por Luigi Zampa? Só quem não leu o livro ou não viu o filme.
Sem ir mais longe, uma das glórias literárias da Itália, Pietro Aretino, "figlio di cortigiana con anima di re", autor de O Diálogo das Prostitutas, era admirado por personalidades como o papa Leão X, que lhe garantia uma vida de rei, como ele mesmo gostava de dizer.
Falar em cinema italiano, Federico Fellini foi um dos grandes cantores das prostitutas. Temos a Saraghina de 8 1/2, a Volpina e a Gradisca de Amarcord, a Maddalena de La Dolce Vita. Isso sem falar na personagem de As Noites de Cabíria, na interpretação comovente de Giulleta Masina. Para Fellini, “a prostituta é o contraponto essencial da mãe italiana. Não se pode conceber uma sem a outra. Da mesma forma que nossa mãe nos alimentou e vestiu, a puta nos iniciou na vida sexual”.
Em Casanova, Fellini canta o reverso da medalha. Muito já escrevi sobre Giacomo Casanova di Seingalt (1725 - 1798), que passou sua vida correndo atrás de saias, de Veneza a Paris, de Lisboa a Moscou, naqueles dias em que o meio de transporte mais confortável era uma carruagem puxada a cavalos. O outro era apenas o cavalo. Ao longo de sua vida, teria recebido as homenagens de cerca de duas mil mulheres. Quem for procurar o verbete na Internet, vai encontrar referência a 122 ou 123 mulheres. Isso é bobagem, cifra de qualquer moleque contemporâneo.
Aos sessenta anos, Casanova começa a escritura de suas memórias. “Agora que não posso mais viver, sento e escrevo sobre o que vivi”. Sem jamais ter pretendido fazer literatura, Casanova entra na História da Literatura, em função de sua vida aventureira. Freqüentou cortes e bordéis, prisão e caserna, clero e políticos, conventos e salões literários. Quem quiser se debruçar sobre o século XVIII - seja historiador, seja sociólogo, seja mero curioso - terá em Casanova um excelente guia. Em momento algum faz penitência de seu passado. “Cultivar o prazer dos sentidos foi sempre minha principal preocupação; nunca encontrei outra coisa mais importante. Sentindo-me nascido para o belo sexo, sempre o amei e por ele me fiz amar quanto pude. Apreciei também os bons manjares com transporte, e sempre me apaixonaram todos os objetos capazes de me excitar a curiosidade”.
O conquistador da Sereníssima República de Veneza não fica exatamente bem retratado no filme de Fellini, é visto como uma espécie de autômato na hora da cama, o que nada tem a ver com o homem que foi em vida. Don Giovanni, ente de imaginação, suscitava o ódio de suas conquistas, pois lhes oferecia amor e as humilhava. Casanova oferecia apenas prazer e não machucava ninguém. Seja como for, Fellini não ignorou estes dois personagens que ocorrem em todas as sociedades, as mulheres que vendem seu corpo e os homens que os compram. Não que Casanova fosse especializado em profissionais do sexo. Mas se fosse preciso pagar, pagava.
Tudo isto para comentar o insólito protesto das feministas que – logo na Itália de Aretino, Casanova, Moravia, Visconti e Fellini – pedem a demissão de Silvio Berlusconi, acusado de denegrir a imagem feminina ao se envolver em escândalo sexual com adolescentes.
Leio na Folha de São Paulo:
Centenas de milhares de mulheres italianas e apoiadores saíram às ruas em várias cidades do país e do mundo ontem para protestar contra o premiê Silvio Berlusconi, demonstrando indignação pelo escândalo sexual protagonizado pelo premiê com uma adolescente.
Segundo os organizadores da mobilização, os protestos tinham a intenção de falar contra a imagem "lesiva" que Berlusconi produz para a população feminina. O movimento foi chamado de "Se não agora, quando?" e surgiu espontaneamente na internet com o apoio de grupos feministas.
Paralelamente à concentração em Roma, foram realizadas outras com o mesmo tema, em Milão, Turim, Palermo, Nápoles, Trieste, Bolonha, entre outras 250 cidades italianas, que deram destaque para a mulher, que falaram alto e claro contra o primeiro-ministro. Anteontem, manifestações em 30 cidades italianas já tinham pedido a renúncia do premiê.
Cá entre nós, quem não gosta de adolescentes? Tanto Aschenbach como Humbert Humbert os adoravam, e não os condenamos por isso. Quando acontece na vida real, anátema seja! José também gostava. Maria tinha treze anos quando concebeu o Cristo. Imagino que as feministas nada tenham contra José. Nem contra o Paráclito, suponho.
Que se queira afastar o premiê do poder por suas falcatruas políticas, financeiras ou fiscais, entendo. Só o que faltava pedir sua demissão por suas festas, no país cujos vates cantaram em prosa e verso as profissionais do sexo.
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