sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

COM A PALAVRA, JANER CRISTALDO

TEÓLOGO BOM É O TEÓLOGO ATEU

Karen Armstrong, ex-freira inglesa, especializou-se no estudo de religiões. Escreveu mais de quinze livros, nos quais se sente em casa discorrendo sobre cristianismo, judaísmo, islamismo ou budismo. Ex-freira, Karin abandonou o convento, aos 25 anos, e passou por uma crise de fé. Seus ensaios são de uma erudição tal que não há memória que os guarde.
Há uns dois anos, comprei na Espanha Los Orígenes del Fundamentalismo, que li com muita atenção. Comentei, na época, como era bom estar em país onde se publicavam livros que não eram publicados no Brasil. Um leitor alertou-me que este livro havia sido publicado aqui no ano 2000, pela Companhia das Letras, com o título de Em Nome de Deus. Fui pesquisar em minha biblioteca. O livro estava lá, e todo sublinhado por mim mesmo. Eu já nem lembrava dele.
O problema destas obras de extrema erudição é que o autor joga tantos dados em uma só página que, mal acabamos de lê-la, não conseguimos memorizá-la. O remédio é sublinhar. Mas sublinhar tem seus limites. Quando o livro está quase todo sublinhado, é como se não estivesse. Se houve época em que tínhamos escassez de dados, hoje vivemos época inversa: os dados são tantos que nao conseguimos mais lembrá-los.
Está sendo publicado no Brasil o último livro da teóloga, Em Defesa de Deus, que ainda não li mas vou ler. Em rápida resenha que encontrei no Estadão, sou informado de que a moça se concentra no cristianismo "porque é a tradição mais diretamente afetada pelo advento da modernidade científica e a mais castigada pelo novo ataque ateísta". E só pode ser assim mesmo, afinal o Ocidente não é islâmico ou hinduísta.
Armstrong desfere ataques aos neo-ateus Christopher Hitchens e Richard Dawkins que seguiriam, segundo a autora, "um naturalismo científico linha-dura, que reflete o fundamentalismo no qual baseiam sua crítica". O ateísmo, define a acadêmica, "sempre é a rejeição de uma forma específica de teísmo e depende dela como um parasita".
Bom, sem deus não existiriam ateus. Não somos parasitas, mas uma decorrência lógica da crença em algum deus. É muito difícil falar numa doutrina do ateísmo, já que o ateu nada afirma, apenas nega. Sem falar que mesmo os crentes são ateus. Se eu sou ateu em relação a Jeová ou ao Cristo, os cristãos são ateus em relação a Jupiter, Héstia, Demeter, Hera, Hades ou Poseidon. Ou Krishna, Shiva, Vishnu ou Brahma. Somos todos ateus, cara Karen.
Hitchens, o ateu, está com câncer. A religião, defende Karen, é uma "disciplina prática" que depende de exercícios espirituais e uma vida de dedicação. A racionalidade científica pode até explicar o câncer de Hitchens, mas não pode aplacar seu pavor, observa. Mas tampouco aplaca o pavor de um crente. Na hora do câncer, os cristãos oram ao seu deus. Mas vão buscar cura na medicina de ponta. Quando a medicina os cura, eles agradecem não aos médicos, mas a deus. O que me parece ser uma ofensa à medicina.
Minha primeira suspeita sobre a existência de deus, lá em meus verdes anos, decorreu da constatação de que existia um deus para cada geografia. Ora, eram tantos que não podiam ser tantos, como diria Pessoa. Para mim ficou claro que deuses eram criações dos homens.
Assim sendo, me espanta que teóloga tão erudita, que passeou por tantas crenças, ainda consiga crer em algumas delas. Pior ainda, depois de velha e detentora da sabedoria que só a velhice confere, Armstrong elogia as religiões primitivas, caracterizadas por rituais, danças, sacrifícios e cantos. Ou seja, fascinou-se pelas mais toscas formas de crença.
Ao visitar as cavernas de Lascaux, a teóloga verificou que religião e arte já surgem inseparáveis. A experiência da iniciação do homem ancestral prova, segundo ela, que não existe no pensamento arcaico o conceito do sobrenatural, ou seja, "nenhum abismo entre o humano e o divino". Não existia o ser supremo, mas apenas um ser.
Ora, que religião e arte são inseparáveis, disto sabemos. Tanto religião como arte são ficções. Daí a deduzir a existência de um ser supremo – ou de apenas um ser, como prefere a autora – vai uma longa distância.
Para a ex-freira, religião virou auto-ajuda: “religião é como música. Não se pode explicar, mas se ouve com prazer e, de quebra, ela ainda opera milagres como acalmar bebês, fazer crescer as flores e curar algumas doenças”. Como quiser. Mas desconheço músicas que ordenem a lapidação de mulheres, a morte de homossexuais ou o extermínio dos não-crentes. Não consigo entender como as fogueiras da Inquisição possam tem acalmado bebês ou feito crescer flores. Certamente curaram algumas doenças. A morte cura tudo.
Teologia? Vá lá. É como a matemática, um sistema axiomático. Decido que deus existe e daí parto a tirar conclusões. Se um mais um é dois, e se dois mais dois é quatro, então quatro mais quatro é oito. Se deus existe, vem toda uma tralha atrás: demônio, anjos, deuses, santos.
Nada a ver com a realidade. Ou, como disse Borges, teologia é a primeira manifestação da literatura fantástica.
Teólogo bom é o teólogo ateu. Que conhece a ficção, mas sabe que é ficção.

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