quarta-feira, 9 de outubro de 2013

CONFISSÕES DE UM JORNALEIRO


João Eichbaum *

 

Com um ar de animal infeliz, eu cuidava para que os chicotes do vento não molhassem os jornais. E encolhido sob a marquise do Hotel Jantzen, contemplava a praça estropiada pela chuva.
 A manhã, feita de minutos infinitos, aumentava o desalento, e um caroço crescia na garganta, porque a pilha de jornais não diminuía.
 Mas eu só chorava quando chegava em casa como um pinto ensopado e via os olhos tristes de minha mãe perdidos no nada, nadando na imensidão da desesperança, a respiração submetida ao descompasso das lágrimas. Aqueles duzentos réis, a comissão pela venda do jornal, representava a miséria na mesa.
E comíamos em consternado silêncio, minha mãe de cabeça baixa, para esconder o amargor, para não nos contagiar com o desespero, com a descrença nas criaturas e na vida. A ração de duzentos réis  não contentava o estômago.
Então eu esperava o milagre do dia seguinte. Talvez Deus nos ajudasse, enxugando os galhos das árvores da praça Saldanha Marinho, mandando  a chuva embora e deixando em seu lugar uma porção de felicidade. Talvez ele apresentasse o sol num céu azul, fazendo o dia nascer feliz, para me deixar trabalhar.
E sem me dar conta de que viviamos um tortuoso inverno, quando a tarde morria e os pingos da chuva amainavam, eu corria à janela, para ver se Deus já tinha planejado estrelas para a noite.
Embora nunca tenha publicado os poemas loucos que eu fazia para uma namorada impossível, o jornal também me fazia sorrir. Nos domingos embebidos em sol, depois da missa das dez, quando os granfinos saiam da catedral, a pilha diminuía. Algumas vezes, sufocado por um gozo radiante, levava dez moedas de cem réis a tilintar nos bolsos.
Mas não eram apenas os mil réis que mexiam comigo. Também as notícias nas segundas feiras. Depois do clássico Rio-Nal, dependendo de quem vencia, eu ficava triste ou exultava, injetado por uma alegria que me dava força para enfrentar os “não” da vida. A alegria ou a tristeza era o jornal que me anunciava, com letras grandes, na primeira página.
Mas, na alegria ou na tristeza, com chuva ou com sol, lá estava eu, na praça Saldanha Marinho, ou debaixo da marquise, com a força de meus pulmõezinhos de criança, vendendo histórias nefastas, grotescas, divorciadas do sublime, ou francamente engraçadas: A Razão, A Razão!
Derrubando obstáculos de sobrevivência e removendo escolhos sentimentais, marcamos nossa passagem pelo mundo, A Razão e eu. E hoje, neste dia 9 de outubro, quando ele completa setenta e nove anos, podemos celebrar nossas conquistas, escrevendo sobre as sinfonias e diafonias da vida, sobre os desvarios do acaso e as determinações da fatalidade, sobre escândalos febris e lampejos de bemaventuranças.
Ao jornal A Razão, que me deu alegrias e tristezas, ergo a taça das conquistas, porque, no cômputo final, o que prevaleceu mesmo foram aquelas, as alegrias que nos mantêm vivos, como testemunhas de uma longa história vivida em conjunto, desde quando  eu contava os cem réis, até hoje, quando conto contos para rir ou chorar.

* Fui jornaleiro, sim, senhores. E sobrevivi. Cursei uma Universidade pública, sem necessitar de cotas, nem de bolsa-família.



Um comentário:

Gigi disse...

Linda crônica. Enfim, descubro que o cronista viveu sua infância em Santa Maria, fala em A Razão, no Hotel Jantzen e em seu difícil início de vida, não idealizado como se costuma. Pelo visto, ele já aproveitava para ler seus jornais, nos dias em Deus o ajudava, "enxugando os galhos das árvores da praça Saldanha Marinho".