João Eichbaum *
Com um ar de animal
infeliz, eu cuidava para que os chicotes do vento não molhassem os jornais. E
encolhido sob a marquise do Hotel Jantzen, contemplava a praça estropiada pela
chuva.
A manhã, feita de minutos infinitos, aumentava
o desalento, e um caroço crescia na garganta, porque a pilha de jornais não
diminuía.
Mas eu só chorava quando chegava em casa como
um pinto ensopado e via os olhos tristes de minha mãe perdidos no nada, nadando
na imensidão da desesperança, a respiração submetida ao descompasso das
lágrimas. Aqueles duzentos réis, a comissão pela venda do jornal,
representava a miséria na mesa.
E comíamos em
consternado silêncio, minha mãe de cabeça baixa, para esconder o amargor, para
não nos contagiar com o desespero, com a descrença nas criaturas e na vida. A ração
de duzentos réis não contentava o
estômago.
Então eu esperava o
milagre do dia seguinte. Talvez Deus nos ajudasse, enxugando os galhos das
árvores da praça Saldanha Marinho, mandando
a chuva embora e deixando em seu lugar uma porção de felicidade. Talvez
ele apresentasse o sol num céu azul, fazendo o dia nascer feliz, para me deixar
trabalhar.
E sem me dar conta de
que viviamos um tortuoso inverno, quando a tarde morria e os pingos da chuva
amainavam, eu corria à janela, para ver se Deus já tinha planejado estrelas
para a noite.
Embora nunca tenha
publicado os poemas loucos que eu fazia para uma namorada impossível, o jornal
também me fazia sorrir. Nos domingos embebidos em sol, depois da missa das dez,
quando os granfinos saiam da catedral, a pilha diminuía. Algumas vezes,
sufocado por um gozo radiante, levava dez moedas de cem réis a tilintar nos
bolsos.
Mas não eram apenas os
mil réis que mexiam comigo. Também as notícias nas segundas feiras. Depois do
clássico Rio-Nal, dependendo de quem vencia, eu ficava triste ou exultava,
injetado por uma alegria que me dava força para enfrentar os “não” da vida. A
alegria ou a tristeza era o jornal que me anunciava, com letras grandes, na
primeira página.
Mas, na alegria ou na
tristeza, com chuva ou com sol, lá estava eu, na praça Saldanha Marinho, ou
debaixo da marquise, com a força de meus pulmõezinhos de criança, vendendo
histórias nefastas, grotescas, divorciadas do sublime, ou francamente
engraçadas: A Razão, A Razão!
Derrubando obstáculos
de sobrevivência e removendo escolhos sentimentais, marcamos nossa passagem
pelo mundo, A Razão e eu. E hoje, neste dia 9 de outubro, quando ele completa
setenta e nove anos, podemos celebrar nossas conquistas, escrevendo sobre as
sinfonias e diafonias da vida, sobre os desvarios do acaso e as determinações
da fatalidade, sobre escândalos febris e lampejos de bemaventuranças.
Ao jornal A Razão, que
me deu alegrias e tristezas, ergo a taça das conquistas, porque, no cômputo
final, o que prevaleceu mesmo foram aquelas, as alegrias que nos mantêm vivos,
como testemunhas de uma longa história vivida em conjunto, desde quando
eu contava os cem réis, até hoje, quando conto contos para rir ou chorar.
* Fui jornaleiro, sim,
senhores. E sobrevivi. Cursei uma Universidade pública, sem necessitar de
cotas, nem de bolsa-família.
Um comentário:
Linda crônica. Enfim, descubro que o cronista viveu sua infância em Santa Maria, fala em A Razão, no Hotel Jantzen e em seu difícil início de vida, não idealizado como se costuma. Pelo visto, ele já aproveitava para ler seus jornais, nos dias em Deus o ajudava, "enxugando os galhos das árvores da praça Saldanha Marinho".
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