FAZ DE CONTA QUE É
João Eichbaum
Gee... zus, exclamou a vovozinha, botando a mão no encardido escapulário
que, para não perder a alma, traz no pescoço, desde que o Vaticano decretou o
fim da batina, e a catedral entregou aos cupins os velhos confessionários.
O jornal A Razão tremia em suas mãos e ela teve que tomar água com
açúcar, antes de chegar ao fim da notícia: agora uma criança pode ter duas
mães, um pai e seis avós!
Suspirou outra vez: Gee...zus! E no encalço do suspiro lhe veio voando o
pensamento de que, por muito menos que isso, já tinha chovido fogo sobre Sodoma
e Gomorra, e o mundo teve que ser refeito. Como já tinha sido refeito antes por
Noé, um velhinho de barbas brancas que, atendendo aos projetos pessoais
de Deus, construiu uma arca e inventou a ressaca do vinho.
Pensou em desmaiar, perdendo a noção do sublime e do ridículo, como forma
de protesto, para agradar a Deus, mas não conseguiu. Viu que nem adiantava
desmaiar porque o Criador, pê da cara com tantos pecados cometidos contra o
sexto e o nono mandamentos, já tinha organizado a lista das infelicidades.
Crianças escravizadas para se renderem à doutrina de Maomé, sob pena de serem
entregues à fúria sexual dos líderes. O ebola dizimando seres humanos, podendo
chegar até a Santa Maria, a terra da Medianeira, se os pecados continuassem a
se multiplicar daquele jeito. O exército islâmico, degolando em nome de Alá e,
também em nome dos mesmo Alá, decepando clitóris de meninas. A carnificina na
Síria, inocentes esquartejados a poder de mísseis na Ucrânia e na Palestina.
Não havia dúvida, tudo já era castigo de Deus, que estava prevendo a
distorção do seu “crescei e multiplicai-vos”, mediante uso de métodos
desgarrados do tradicional “papai e mamãe”, para a geração de clãs formados por
um pai, duas mães e seis avós.
Já seu marido, provecto bacharel, abeberado nas lições do mais ilustre
filho de Santa Maria, o constitucionalista Carlos Maximiliano, suava às bicas,
tentando ajustar, com tessitura e teor, dentro de um clã constituído por
duas mães e um pai,o direito de convivência familiar, assegurado à criança no
artigo 227 da Constituição Federal. Não conseguiu, e aí lhe deu o estalo:
bigamia! Sim, pensou, duas mães e um pai, formando uma família não tem outro
nome, é bigamia mesmo. E, acostumado a virar o Direito pelo avesso, para
estudar de antemão os fundamentos da parte contrária, outra hipótese lhe
ocorreu. E se fossem dois pais homossexuais, querendo um filho para formar a
“família”? Ah, teriam que encomendar uma mãe, e a mãe teria seu lugar
assegurado no assento de nascimento da criança. Nesse caso, dois pais e uma
mãe. Tudo diferente, mas a mesma coisa: bigamia.
O provecto bacharel, monógamo e de bons costumes, não encontrou solução
dentro do seu juramentado conhecimento das leis. Mas para não se engalfinhar
com dúvidas, rendeu-se à intragável certeza de que um novo instituto estava se
incorporando ao léxico do Direito: a suruba jurídica.
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