quarta-feira, 24 de setembro de 2014

FAZ DE CONTA QUE É
João Eichbaum


Gee... zus, exclamou a vovozinha, botando a mão no encardido escapulário que, para não perder a alma, traz no pescoço, desde que o Vaticano decretou o fim da batina, e a catedral entregou aos cupins os velhos confessionários.
O jornal A Razão tremia em suas mãos e ela teve que tomar água com açúcar, antes de chegar ao fim da notícia: agora uma criança pode ter duas mães, um pai e seis avós!
Suspirou outra vez: Gee...zus! E no encalço do suspiro lhe veio voando o pensamento de que, por muito menos que isso, já tinha chovido fogo sobre Sodoma e Gomorra, e o mundo teve que ser refeito. Como já tinha sido refeito antes por Noé,  um velhinho de barbas brancas que, atendendo aos projetos pessoais de Deus, construiu uma arca e inventou a ressaca do vinho.
Pensou em desmaiar, perdendo a noção do sublime e do ridículo, como forma de protesto, para agradar a Deus, mas não conseguiu. Viu que nem adiantava desmaiar porque o Criador, pê da cara com tantos pecados cometidos contra o sexto e o nono mandamentos, já tinha organizado a lista das infelicidades. Crianças escravizadas para se renderem à doutrina de Maomé, sob pena de serem entregues à fúria sexual dos líderes. O ebola dizimando seres humanos, podendo chegar até a Santa Maria, a terra da Medianeira, se os pecados continuassem a se multiplicar daquele jeito. O exército islâmico, degolando em nome de Alá e, também em nome dos mesmo Alá, decepando clitóris de meninas. A carnificina na Síria, inocentes esquartejados a poder de mísseis na Ucrânia e na Palestina.
Não havia dúvida, tudo já era castigo de Deus, que estava prevendo a distorção do seu “crescei e multiplicai-vos”, mediante uso de métodos desgarrados do tradicional “papai e mamãe”, para a geração de clãs formados por um pai, duas mães e seis avós.
Já seu marido, provecto bacharel, abeberado nas lições do mais ilustre filho de Santa Maria, o constitucionalista Carlos Maximiliano, suava às bicas,  tentando ajustar, com tessitura e teor, dentro de um clã constituído por duas mães e um pai,o direito de convivência familiar, assegurado à criança no artigo 227 da Constituição Federal. Não conseguiu, e aí lhe deu o estalo: bigamia! Sim, pensou, duas mães e um pai, formando uma família não tem outro nome, é bigamia mesmo. E, acostumado a virar o Direito pelo avesso, para estudar de antemão os fundamentos da parte contrária, outra hipótese lhe ocorreu. E se fossem dois pais homossexuais, querendo um filho para formar a “família”? Ah, teriam que encomendar uma mãe, e a mãe teria seu lugar assegurado no assento de nascimento da criança. Nesse caso, dois pais e uma mãe.  Tudo diferente, mas a mesma coisa: bigamia.
O provecto bacharel, monógamo e de bons costumes, não encontrou solução dentro do seu juramentado conhecimento das leis. Mas para não se engalfinhar com dúvidas, rendeu-se à intragável certeza de que um novo instituto estava se incorporando ao léxico do Direito: a suruba jurídica.



Nenhum comentário: