Janer Cristaldo
O ano era 1980 e eu vivia em Paris. Hospedei por alguns dias o namorado de uma advogada trabalhista gaúcha, que se dirigia a Moscou para um curso de cinco anos na Patrice Lumumba. Muito ingênuo, uns vinte anos antes eu havia postulado a mesma bolsa. Queria sair do Brasil, não importava para onde fosse. Quis o bom deus dos ateus que minha aplicação fosse interceptada pelos serviços de segurança, o que me valeu um interrogatório e uma noite de prisão em Dom Pedrito. Dos males, o menor. Ganhasse a bolsa, faria de minha vida um inferno e, na época, teria dificuldades para voltar ao Brasil.
O ano era 1980 e eu vivia em Paris. Hospedei por alguns dias o namorado de uma advogada trabalhista gaúcha, que se dirigia a Moscou para um curso de cinco anos na Patrice Lumumba. Muito ingênuo, uns vinte anos antes eu havia postulado a mesma bolsa. Queria sair do Brasil, não importava para onde fosse. Quis o bom deus dos ateus que minha aplicação fosse interceptada pelos serviços de segurança, o que me valeu um interrogatório e uma noite de prisão em Dom Pedrito. Dos males, o menor. Ganhasse a bolsa, faria de minha vida um inferno e, na época, teria dificuldades para voltar ao Brasil.
Mas falava do gaúcho que ia para Moscou. Eu o recebi com meus melhores vinhos e charlamos por pelo menos duas noites. Que vais fazer em Moscou? – perguntei. “Vou fazer arquitetura, na Patrice. Um curso de cinco anos”. Sabes desenhar caixas de fósforos? – voltei à carga. Ele me olhou com um gesto de que eu não merecia resposta. Bom, meu caro, se sabes desenhar caixas de fósforo, já dominas toda a arquitetura soviética. Nem precisa ir.
Ofendeu-se, o gaúcho. Queria ir embora lá de casa. Instei-o a ficar, eu apenas fazia um comentário. Mas predisse: tu vives boa vida em Porto Alegre. Não vais agüentar nem seis meses em Moscou. Despediu-se de mim irritado.
Mês seguinte, chega sua namorada, a advogada trabalhista. Iria visitá-lo em Moscou. Ficou um mês esperando pelo visto. Nesse meio tempo, fui lhe apresentando as delícias do capitalismo. Bom, vai daí que a moça acabou indo ao paraíso socialista. Voltou um mês depois. De cabeça gacha. Como é que foi? – perguntei. Ela não falou muito. Disse apenas que era uma cidade concebida para gigantes. Antes de voltar ao Brasil, fez-mealgumas confidências. “Tudo é escasso lá. E não há escolha. Os absorventes higiênicos são enormes”.
Pois é, minha querida. País de gigantes é assim mesmo. Mas a história não termina aqui. Continuamos a trocar correspondência. Era a época das cartas, que demoravam pelo menos uma semana para chegar. Três meses depois, ela me dá notícias de Porto Alegre e fala que o namorado havia decidido voltar, que não via muito sentido em ficar cinco anos estudando agronomia em Moscou. (Agora, era agronomia. O curso inicial era arquitetura). Continuou escrevendo e, ao final, um PS: “Tche, o Rui chegou ontem”.
O bravo militante comunista, que fora à Rússia para um curso de cinco anos, não agüentou nem seis meses, como eu previra. Nos encontramos mais tarde em Porto Alegre.
Viu? – perguntei –. Nem seis meses.
- Ah! Não vou te explicar. Não vais entender.
Não iria entender mesmo. Só afirmei que ele não suportaria nem seis meses em Moscou. Mas bom cabrito não berra.
Não iria entender mesmo. Só afirmei que ele não suportaria nem seis meses em Moscou. Mas bom cabrito não berra.
Digo isto a propósito do retorno de Cuba de
Luciana Genro. A ex-deputada stalinista nos prometeu um relato de seu périplo,
pelo qual esperei ansiosamente. Boa stalinista também não berra. Apesar de
todos os relatos da miséria que assola a ilha, da fuga em massa dos cubanos
para Miami, dos fuzilamentos sumários ordenados por Castro e Guevara, Luciana
Genro encontra palavras para louvar uma ditadura de mais de cinqüenta anos – a
mais longa do século passado.
“A vitória da guerrilha de Fidel e Che Guevara foi o coroamento de uma luta de massas que derrubou uma ditadura sangrenta que fazia do país o quintal de recreação da burguesia americana, à custa da pobreza extrema dos cubanos – escreve Genro – . Por isso esta revolução ainda é reivindicada pelo povo. Mesmo quem critica o regime sabe que a revolução cumpriu um papel fundamental para a libertação do país”.
Se antes era o quintal de recreação da burguesia americana, hoje é o bordel de todo Ocidente. Castro conseguiu um milagre. Banalizou a tal ponto a prostituição, que hoje um cubano oferece alegremente aos turistas sua mulher, em troca dos malditos dólares do império. Quando perguntaram a Fidel porque em sua ilha as universitárias se prostituíam, o Líder Máximo foi olímpico: é que em Cuba até as prostitutas têm grau universitário. Quanto a pobreza extrema dos cubanos, esta não é exatamente dos dias de Fulgencio Batista. O salário médio de um médico cubano, hoje, é de 15 dólares por mês, quantia que um mendigo tira fácil por dia no Brasil. As libretas de racionamento são achados do regime castrista, não do governo de Batista. Naqueles dias, quem queria sair de Cuba saía quando bem entendesse. Na ditadura de Castro, só fugindo e arriscando a vida no mar do Caribe.
A ex-deputada consegue ser um pouco mais honesta que Michael Moore em Sicko, mas acaba enredando-se em suas dialéticas contradições: “Depois do fim da URSS a situação econômica de Cuba piorou terrivelmente”. Qual era o subsídio da extinta à Cuba? Cinco bilhões de dólares anuais. Para uma ilhota de 10 milhões de habitantes. O que dá 500 dólares per capita ao ano. Hoje, um médico ganha 180 dólares por ano, menos da metade do subsídio soviético. Em uma frase, Genro atesta o fracasso total da dita revolução cubana.
“Não conheci a Cuba de antes, mas hoje a miséria anda nas ruas e contrasta com a opulência ostentada pelos turistas, que inclusive utilizam outra moeda para consumir o que é inacessível ao cidadão nacional. O que um turista paga por uma refeição em um restaurante médio equivale ao salário de um mês inteiro de um cubano, ou mais, dependendo da profissão. É verdade que o abismo entre ricos e pobres que vivemos no capitalismo não existe entre os cubanos, mas ele revela-se de forma cruel no contraste entre a capacidade de consumo dos cubanos versus a dos turistas”.
O turista usa outra moeda porque o regime não permite que os cubanos usem a mesma moeda do turista. E se um turista paga por uma refeição em um restaurante médio o equivalente ao salário de um mês inteiro de um cubano, a culpa não é do turista, mas do regime que oferece tais salários. Desde há muito um cubano não come não mesmo restaurante que um turista, e isto sempre foi assim em todo país socialista. Genro estabelece uma espécie de luta de classes entre os malvados turistas – esquecendo que ela também é turista – e os coitadinhos cubanos. Mas turistas vêm de economias capitalistas e conseguem pagar o preço dos restaurantes cubanos... para turistas.
Quanto aos cubanos, vivem em economia socialista ... e que se lixem. Diga-se de passagem, é o turismo que traz a Cuba os raros dólares que entram na ilha. Outros dólares são enviados pelos familiares refugiados naquele malvado país capitalista, os Estados Unidos.
A deputada até que reconhece algumas manchas no paraíso: “As glórias da revolução não anulam um fato que é claro como o dia: a população não tem canais de expressão. A direção do Partido Comunista Cubano é uma burocracia fossilizada que mantém a política interditada no país. Quem diverge é tratado como traidor e enquadrado como agente imperialista. Se eles lessem este meu relato eu possivelmente seria assim qualificada”.
Mas... qual partido comunista não é fossilizado? Ou ela conhece algum que seja ágil e moderno? Por que a ex-deputada não disse isto lá em Cuba? Mesmo assim, a militante do PSOL endossa todas as ditaduras do século passado:
"Pois finalizo reiterando as minhas convicções socialistas,
reivindicando a revolução russa, chinesa, cubana… e a minha aversão aos
burocratas ditos comunistas que desfiguraram o projeto comunista, que na
tradição marxista registrada no Manifesto escrito por Marx e Engels é um
projeto de igualdade, solidariedade e libertação de toda a exploração e
opressão, seja ela exercida pela burguesia ou pela burocracia”.
Genro está endossando o preço das revoluções que louva: cem milhões de cadáveres. Desvios do projeto original. Quem sabe, numa outra tentativa... Afinal, quando as estatísticas estão na ordem dos milhões, centenas de milhares de cadáveres constituem apenas um detalhe. Tanto faz como tanto fez.
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