Janer Cristaldo
Não se fazem mais nossas senhoras como antigamente. Já vão longe
os tempos em que a Virgem aparecia com toda uma mise-en-scène, fazia o sol
parar e transmitia a inocentes pastorinhas segredos vitais para a humanidade.
Desde Colombo até hoje, os conquistadores sabem muito bem que, ao impor o mito de uma mãe virgem a culturas pagãs, já ganharam a batalha. O papa que o diga. Em 1990, comentei como foi criada a Virgem de Guadalupe.
Na época, João Paulo II foi ao México, não para degustar tequila ou ouvir mariachis, e sim para beatificar Juan Diego, o índio em cuja túnica as rosas teriam deixado gravada a imagem da Virgem de Tepeyac, mais conhecida como Virgem de Guadalupe, não por acaso a mesma venerada nas montanhas de Estremadura, e muito querida pelos conquistadores. João Paulo, padre astuto, intuindo que a tal de teologia de libertação está em franca decadência com o desmoronamento do fascismo eslavo, investiu no mistério. E conferiu odor de santidade ao coitado do íncola manipulado pelo barroco europeu.
Tudo começou nos anos 1550, quando na colina
de Tepeyac os indígenas mexicanos prestavam culto a um ixiptla, ou seja,
estátua ou imagem de uma deidade que, na linguagem dos conquistadores, é
traduzida como ídolo. O ixiptla, no caso, é o da deusa Toci-Tonantzin, nome
que, traduzido do náuatle, dá - maravilhosa coincidência! - Nossa Mãe.
Alonso de Montufar, arcebispo do vice-reino,
não vai perder esta oportunidade - como direi? - divina, de sobrepor, como
sempre fez a Igreja romana, aos símbolos e cultos pagãos, a tralha católica.
Encomenda a Marcos, um pintor indígena, uma obra inspirada em um modelo europeu
e a coloca ao lado do ixiptla asteca, gesto aparentemente inocente se visto
daqueles dias, mas carregado de conseqüências quando o olhamos com o distanciamento
de quatro séculos.
Pelo período de aproximadamente um século, a imagem da Virgem permanece, sem trocadilhos, em banho-maria, sem que se fale de epifanias ou milagres. Em 1648, com a publicação de Imagen de la Virgen Madre de Diós de Guadalupe, do padre Miguel Sánchez, o culto mariano toma novo impulso.
"Segundo esta versão destinada a tornar-se canônica" – escreve Serge Gruzinski, em La Guerre des images - a Virgem teria aparecido três vezes em 1531 a um índio chamado Juan Diego. Segundo Juan de Zumárraga, primeiro bispo e arcebispo do México, Juan Diego abriu sua capa sob os olhos do prelado: "em lugar das rosas que ela envolvia, o índio descobriu uma imagem da Virgem, miraculosamente impressa, até hoje conservada, guardada e venerada no santuário de Guadalupe".
Mas nada surge do nada, muito menos imagens.
Antes da publicação do livro de Miguel Sánchez, que oficializa a versão das
rosas imprimindo os traços da Virgem na capa de Juan Diego, haviam chegado ao
México pelo menos duas levas de pintores e arquitetos, profundamente
influenciados pela escola flamenga. Colocando seus talentos a serviço da
Igreja, estes artistas transportam ao novo continente o imaginário europeu.
Vasto é o mercado.
Para Gruzinski, a clientela dos artistas cresce e se diversifica: "A corte, a igreja, as autoridades municipais, a universidade, a Inquisição, as confrarias e os ricos entregam-se a uma concorrência cada vez mais viva e rivalizam em encomendas que afirmam publicamente, aqui como alhures, poder, prestígio e influência social. Eis então reunidos todos os meios de uma predileção pela imagem e de uma produção em larga escala, conforme o gosto europeu, impulsionada pela Igreja, posta sob a vigilância da Inquisição e de prelados de zelo por vezes intempestivo".
Faltava apenas o ingênuo para descobrir, sob as rosas, a imagem da Virgem. Como seria pouco convincente apresentar uma imagem sendo descoberta por seus criadores, foi escolhido Juan Diego, hoje alçado à condição de beato pela igreja que destruiu seus ixiptlas e sua cultura. E assim, como quem não quer nada, semeando marias mundo afora, vai o Vaticano alastrando seus domínios.
Todos devem estar lembrados quando, em 1917,
a Virgem apareceu em Fátima, na cova de Iria, aos três pastorinhos. O sol, como
uma roda de fogo, girou então sobre si mesmo durante dez minutos. Curiosamente,
não se constatou efeito algum no clima da Terra destes movimentos anômalos do
sol.
Um padre português desmascarou a aparição a partir de uma análise gramatical dos fatos. Uma das pastoras perguntou à Virgem: quem sois? Ora, é de espantar que naquela época uma criança camponesa conjugasse assim tão à vontade a segunda pessoa do plural, coisa que hoje muito jornalista sequer conhece. Mas a santa, muito analfabeta, também se trai em seu discurso. Diz a Virgem: eu sou a Nossa Senhora. Como Nossa? Se se dirigia a terceiros, teria de dizer: eu sou a Vossa Senhora.
Claro que o Brasil, tido como a maior nação católica do mundo, não poderia deixar de ter uma santa virgem. Em certo dia do ano de 1717, alguns pescadores lançaram suas redes no rio Paraíba, perto de São Paulo, e em vez de peixes pescaram uma estátua sem cabeça. Ao lançarem novamente as redes, retiram a cabeça: tratava-se de uma Virgem Negra. Isto é, uma afrovirgem, como se diria hoje.
Daí a construir o maior local de culto da América Latina foi apenas questão de tempo. Em 1955, foi construída a basílica Nossa Senhora de Aparecida, que ocupa uma superfície total de 18 mil metros quadrados e pode acolher 45 mil fiéis. É a segunda maior basílica do mundo, após a de São Pedro em Roma, e o papa João Paulo II, em 1980, concedeu-lhe o título de "Basílica menor".
Como
as virgens de Fátima e Lourdes, a Santa Cidinha tupiniquim constitui uma mina
de ouro para a Igreja brasileira.
A penúltima virgem é a de Medjugorje, na
Iugoslávia, ainda não reconhecida pela Igreja. Suas aparições tiveram início em
24 de junho de 1981. Entre os videntes, encontram-se seis pessoas nascidas nos
arredores da localidade – que quer dizer “em meio aos montes” – e a quem a
Santíssima Virgem Maria, evitando a armadilha gramatical de sua congênere de
Fátima, se apresentou como "Eu sou a Rainha da Paz". Penúltima
virgem, dizia. Pois agora, nos alvores de 2012, os jornais nos falam da última,
a Virgem da Amazônia.
Se antes as virgens apareciam para crianças ou pessoas humildes e deixavam uma imagem para ser encontrada por índios ou pescadores, hoje as virgens dispensam tais recursos. São produzidas por designers e eleitas em concurso, conforme o gosto do respeitável público. Leio na Folha de São Paulo de hoje que a arquidiocese de Manaus apresentou aos fiéis uma imagem de Nossa Senhora e do menino Jesus com traços indígenas.
Chamada de Nossa Senhora da Amazônia, a imagem foi feita pela designer Lara Denys, 23, vencedora de concurso para retratar a santa com "características da cultura da região amazônica". Na imagem, Nossa Senhora e Jesus têm cabelos e olhos pretos e pele parda. O manto dele está preso ao corpo dela, da mesma forma que as índias carregam seus filhos.
Virgens são precursoras de santuários. Segundo o coordenador do concurso, padre Reneu Stefanello, será construída a sua estátua no santuário que está sendo erguido em Manaus.
"Ela tem os traços da feminilidade da
mulher amazonense, da mulher indígena. Traz no colo um Jesus curumim",
afirma o padre. Cristo, provavelmente, terá nascido em um igarapé.
Segundo o antropólogo Ademir Ramos, da Universidade Federal do Amazonas, a imagem é uma estratégia para evitar a perda de fiéis para os protestantes pentecostais. "A Igreja Católica quer passar a identificação entre o devoto e o santo. Como o fiel vai devotar uma santa branquinha de olho verde?"
Crie-se então uma Nossa Senhora ao gosto popular. Certamente será uma virgem ecológica, protetora da floresta e dos recursos naturais e inimiga das barragens e da pecuária e agricultura intensivas. E defensora das reservas indígenas, é claro. O padre Stefanello perdeu uma oportunidade de ouro de fazê-la aparecer à Marina Silva.
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