A PROPÓSITO DE SEU ANIVERSÁRIO
João Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com
O futuro de Santa Maria (que está de
aniversário nesta semana) estava adormecido nas terras do cidadão Ernesto
Beck. Ele não se deixara seduzir, à primeira vista, pela promessa de
transformar a cidade no primeiro pólo ferroviário do Rio Grande do Sul. Recusou
o negócio que lhe ofereciam, para que parte de sua propriedade servisse à
instalação da ferrovia.
Corria do ano de 1884. Na cidade,
despontava como líder João Daudt Filho, cuja família tinha vindo de São
Leopoldo. Aqui educado, João Daudt, em pouco tempo, mostrou que sabia lidar com
sua vocação para a liderança.
Ao ser informado de que, em razão de
interesses inconciliáveis, Ernesto Beck se negava a vender suas terras, e o
entroncamento das linhas férreas, centralizando aqui as conexões com todo o
Estado, seria instalado em Cachoeira do Sul, Daudt foi ter com Beck, propondo
uma troca: seus terrenos pelos dele. Os terrenos de Daudt eram mais valiosos do
que os terrenos de Ernesto Beck.
- Mas você vai perder dinheiro, porque
seus terrenos valem muito mais do que os meus – ponderou Ernesto.
Daudt explicou que o fazia para
proporcionar o progresso da cidade. Entregaria esses terrenos, por
qualquer preço, para a instalação da ferrovia.
Aí, Ernesto Beck foi chamado à razão pela
honestidade alemã:
- Pois bem, se é assim, diga aos
engenheiros da ferrovia que tomem conta dos meus terrenos. Também sou
santamariense.
O entroncamento ficou aqui. Desbravaram-se
matas, estenderam-se trilhos, construiram-se as oficinas, os depósitos, a
estação ferroviária. Em torno da ferrovia, a cidade cresceu. Os hotéis foram se
instalando, os mais modestos, próximos à estação, e no centro da cidade os mais
sofisticados, à medida que o exigiam os viajantes que aqui pernoitavam.
Os empregos apareceram. O grande número de
ferroviários proporcionou a constituição de uma Cooperativa. A Cooperativa
cresceu, construiu escolas, gerou comércio próprio, e até hospital ergueu,
dotando a cidade de um modelo de cooperativismo, de que nunca mais se teve
notícia.
Mas, o futuro rompeu o encanto. Ao invés de importarem
o conceito alemão e japonês de ferrovia, outros líderes, que não os alemães de
antigamente, optaram pelo seu sucateamento, seduzidos pela sereia da
Universidade. E como bacharel não bota a mão em graxa, a cidade passou a
engordar sem enriquecer, abrigando, hoje, um monte de sub-empregados com canudo
na mão.
Hoje nós, que vivemos longe dela, temos
saudade dessa cidade aninhada aos pés de montanhas que nos negavam o horizonte,
de um lado, mas deixavam um vão imenso, no outro, para que pudéssemos avistar o
infinito. Era a nossa princesa, vergastada pelos acúleos do vento norte,
proibida de ver o céu pelas neblinas de inverno, entregue à modorra escaldante
das tardes de verão. Era a nossa cidade, onde despertávamos com os sinos
álacres das locomotivas que chegavam, e adormecíamos ao silvo plangente do trem
noturno que partia.
.
Um comentário:
Saborosa crônica, "comme d'habitude". É bom saber de tais fatos de nosso passado, de pessoas concretas, que hoje conhecemos como nomes de ruas. De Daudt, eu sabia um pouco, alegra-me confirmar as primeiras impressões. Ernesto Beck era um vazio na minha mente. No início da crônica eu já formava um juízo negativo. Que bom verificar a evolução do seu pensamento, pela força de uma liderança. Sem renegar a vocação comercial, estudantil-universitária, também militar, seria bom e mais harmônico se a cidade e o país não tivessem negligenciado o transporte ferroviário. Haverá uma segunda chance?
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