PERVERSÕES URBANAS
Janer Cristaldo
Janer Cristaldo
Tive cinco cachorros em minha infância. Tive? Bom, eram os cães de minha família. Melhor dizendo, de meu pai, já que minha mãe nunca ligou para eles. Como quem mais convivia com a cachorrada era eu, eu os considerava como meus. Alguns tinham suas funções. Um deles, o Tigre, era ovelheiro, para ajudar nas lides com o gado. Não que tivéssemos grande rebanho.
Mas a Moreirada viva em sucessão e os pequenos rebanhos juntos davam algum trabalho na hora do banho, tosa e castração. O ovelheiro é um cachorro que me faz meditar. De onde vem sua vocação? Um peão com três ou quatro ovelheiros controla facilmente um rebanho de cem ovelhas. Não consegue isso com nenhuma outra raça. Profundo mistério.
Tínhamos dois galgos para caçar lebres. De minha lembrança, eram cachorros grandes, altos, elegantes. Quando vejo algum galgo aqui por Higienópolis, me pergunto se diminuíram de tamanho ou se fui eu que cresci. A segunda hipótese é mais viável. Um dos galgos, tivemos de sacrificar. Começou a comer cordeiros. Como não existiam psicanalistas para cães naqueles rincões, o remédio foi uma bala na cabeça.
Os demais cães eram multifuncionais. Serviam para caça, vigilância e também lazer. O Solón era um guaipeca com vocação para suicida. Muitas vezes o salvei de afogamento. O ratão do banhado é um roedor inteligente, faz sua toca na barranca das sangas, acima do nível d’água. Mas a entrada é embaixo d’água. Quando Solón se encarniçava na perseguição de um deles, o seguia literalmente ao inferno se fosse o caso. O ratão mergulhava, o cusco mergulhava atrás. O ratão entrava na toca e Solón ia junto. E ficava sob a água, entalado na entrada. Se alguém não o puxava, era morte certa.
Um outro vira-lata era o Tição, preto como diz o nome. Meus cães eram avessos ao progresso e tinham profunda desconfiança com os automóveis. Quando passava algum pela Linha Divisória – ou, milagre, chegava a nosso rancho – avançavam no carro. Resultou disso que Tição quebrou uma mão e de mão quebrada ficou. Num raio de léguas, havia um médico – o Dr. Christiano Fischer – e um farmacêutico – "seu" Tomás Quincozes – e ninguém naqueles pagos imaginava que houvesse médico pra cachorro.
Dele tenho uma comovida lembrança. Saímos pelo campo e Tição pegou uma lebre dormindo. A safada fingiu que continuava dormindo – e aqui de novo minha perplexidade ante a inteligência animal – e deixou-se levar na boca do cachorro. Quando apeei do cavalo, Tição soltou sua presa. Que saiu saltitando campo afora. Tição, mortalmente frustrado, tentou persegui-la com suas três patas.
Mas sempre os tratamos como animais. Que cuidassem de seu sustento. Fora o que conseguiam por iniciativa própria, comiam lavagem e sobras de comida. E nenhum dormia dentro de casa. Ou ao relento ou no galpão. Casa é lugar de gente.
Retoucei com minha cachorrada em minha infância, adorava rolar com eles naquele mar verde de alhos-bravos. Abandonei-os quando fui para a cidade, aos 11 anos. Ao voltar àqueles pagos, mesmo após meses de ausência, de longe eles me reconheciam e corriam a saudar-me. Cachorro no campo, eu entendo. Já o cachorro urbano, este me parece uma espécie de ersatz ao afeto humano. Quando morreu minha mulher, não faltou quem me recomendasse um cão. Só o que faltava, trocar a lembrança de uma pessoa querida pela companhia de um animal.
Quando foi a vez de meus pais migrarem, jamais pensaram em levá-los. Cachorro era algo que só concebiam no campo. Sem falar que na cidade não havia rebanho a cuidar, muito menos lebres ou tatus. A propósito, meu pai teve uma surpresa desagradável em Dom Pedrito. No Upamaruty, suas parcas posses terminavam no horizonte, lá onde começava o Uruguai. Na cidade, seu território não ia além do pátio. Sentia-se sufocado. Do outro lado da cerquinha do jardim, as terras já não eram dele. Quando fui morar em apartamento, meu pasmo não foi menor. Meu espaço terminava na janela.
Do que lembro daqueles dias – anos 60 – não havia no Brasil esse culto extremado aos cães que hoje vemos, particularmente nas grandes cidades. Confesso não ter lembrança de comida para cachorro, muito menos de brinquedos ou roupas. Veterinários existiam, mas se preocupavam mais com cavalos.
Foi em Estocolmo, no início dos 70, que tomei contato com o apreço dos europeus pelos cães. Lá encontrei, para minha surpresa de latino, centenas de publicações dedicadas aos cães e seus cuidados, desde revistas e jornais até inesgotável literatura especializada. Nas bibliotecas e livrarias, ao lado de O Primeiro Bebê, encontravam-se títulos como O Primeiro Cão, O Primeiro Gato. Nos supermercados, alimentação para cães e gatos, nacional e importada, era consumida paralelamente pelos estrangeiros. Não só por ser mais barata, como também incomparavelmente mais gostosa que certos pratos nacionais, como o surströming e blodpudin (arenque podre e pudim de sangue).
Fatos ilustravam o zelo dos suecos por seus cães. Em 09.08.72, o Aftonbladetapresentava uma reportagem de última página sobre um pastor alemão que ficou uma semana encerrado em um canil, num sítio em Eslöv, por descuido da proprietária. Os vizinhos, normalmente cheios de dedos no caso de relacionamento com seres humanos, foram sensibilizados pelos uivos do cão e passaram a alimentá-lo por uma abertura. O animal foi libertado por um comitê constituído pela polícia, inspetor dos serviços sanitários, veterinário e representante da Liga de Proteção aos Animais, de Lund. Sua proprietária mereceu o repúdio nacional.
Ainda em 72, surgiu — e foi festejada pela imprensa — em Estocolmo a primeira ambulância para animais da Europa. Seu telefone estava acoplado ao 90.000, número memorizado por todos mal aprendem a falar, pois atende casos de doença, assalto, suicídio, incêndio e emergências outras. A ambulância não atendia apenas cães e gatos, como também raposas, esquilos e texugos feridos nas estradas ou aves marítimas envenenadas pelo petróleo. Olle Larsson, proprietário e chofer da ambulância, contava que a polícia muitas vezes o auxiliava a abrir caminho no tráfego, com sirenes, para um socorro mais rápido aos animais feridos.
Mas foi em Paris, alguns anos mais tarde, que me deparei com o absurdo. Lá encontrei livros como o Guide du Chien en Vacances, mapeando a rede hoteleira destinada aos cães, com hotéis divididos em um, dois e três ossos, sendo que nesta última categoria os cuscos eram postos à mesa com guardanapos e servidos, na sobremesa, com crêpes au Grand Marnier. Sem falar no Recettes pour Chiens et Chats, best-seller que em seu prefácio oferecia às donas-de-casa a alternativa de, em vez de utilizar enlatados, cozinhar para o prazer de seus fiéis companheiros.
O livro dava uma série de receitas à base de carnes e peixes, mais manteigas caninas, para animais carnívoros ou vegetarianos, mais bebidas e molhos, tudo aquilo como entrada para depois sugerir pratos de resistência, onde se previa também um regime sem ossos, mais bolos e doces, mais cosméticos e remédios, onde se especificava desde pastas dentifrícias com mel e óleos de massagem pós-banho.
Leio hoje no UOL, que o Dia das Mães foi estendido ao mundo animal. “O dia das mães é diferente na casa delas. Ao invés de presentes e crianças, filhos de quatro patas são os grandes responsáveis pela comemoração da data. São mulheres que escolheram ter a experiência maternal ao lado de um animalzinho e fazem de tudo por eles. “Me sinto completa com esse modelo de família”, conta a veterinária Vanessa Requejo, de 36 anos.
A decisão foi tomada junto com o marido, ainda antes de casar. “É um assunto muito sério, precisa ser consciente. Tenho amigas com filhos, tenho sobrinhos, convivo com crianças, mas nunca me coloquei nessa situação”, explica. São sete gatos e seis cães para dar atenção, mas os números não param por aí. Proprietária da creche Cãominhando, em São Paulo, Vanessa mantém por perto sua turminha e ainda é responsável por dezenas de outros hóspedes. “Eles precisam ser felizes respeitando as necessidades e natureza. Devem passear, brincar, rolar na grama. Não suporto a idéia de cães presos”, diz.
A notícia cita outras “mães”, que trocaram o afeto de um filho humano pelo afeto de um cachorro. Uma delas, carrega no celular fotos de Frederico, Parmalat e Angelina, todos cachorros sem raça definida. As imagens também ficam no computador e espalhadas em porta-retratos”. Visita na minha casa acontece somente se a pessoa gostar de animais, eles não ficam presos e nem os repreendo. Entendo quem não quiser vir, mas a casa é minha e esta é a regra”, explica.
Ah, conheço de perto a raça. São capazes de passar, impassíveis, por crianças jogadas na calçada. Mas não resistem ao charme de um cãozinho abandonado. A indústria alimentar sabe disto e tudo faz para transmutar em amor o que, cá entre nós, é doença. No fundo, medo do outro, do ser humano. Ser humano é um bicho desagradável, tem vontade própria, desobedece aos pais e, pior, gosta de ser livre, independente.
Melhor um brinquedinho vivo, sem vontade própria, daqueles que quando a gente chuta volta contente a nos bajular, abanando o rabo. Satisfaz mais às insuspeitas perversões do homem contemporâneo.
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