CRÔNICA DO ESCRIBA
DOIDO
João
Eichbaum
Não vi seu rosto. Ele dormia debaixo do viaduto, enroscado em plásticos,
jornais e panos que, um dia, foram cobertores. Eram dez da manhã, o sol brilhava, as pessoas passavam
rente dele, correndo, fazendo exercícios, para espantar a morte ou para ficarem
mais elegantes. Mas, ele dormia. Um sono solto, indiferente à vida, indiferente
ao céu azul, indiferente às nuvens que quebravam a monotonia desse azul, com
seus enormes flocos de algodão. Ele dormia, plácido, surdo, nem aí para o
voluteio dos pássaros que comemoravam a primavera.
Ah, a propósito, bem perto de sua cabeça jazia um pássaro morto, já em estado
de decomposição. Mas, pouco se lhe dava: ele dormia o sono dos mais do que
justos, o sono daqueles que foram condenados pelos deuses e pelos homens a
viverem à margem da sociedade, sem passado, sem futuro, e tendo como presente
apenas o dia em que estão vivendo, e vivendo quer dizer dormindo ou pedindo
alguma coisa para comer.
Ninguém sabe o que lhe gerou essa culpa pela qual está pagando. Nem mesmo
ele sabe. Ninguém sabe por qual razão está cumprindo essa sentença de fome, de
frio, de sono ao relento, ao lado de um pássaro morto. Ninguém sabe por que foi
condenado a ficar exposto à indiferença dos passantes, que lá vão correndo, ou
caminhando em passos esportivos, com bonés, óculos, tênis e abrigos ou calções
de marca.
Não vi seu rosto, repito. Mas sei
que era negro, porque os pedaços de cobertor, de que ele se servia, não eram
suficientes para lhe tapar o corpo todo. E as pernas eram de negro. Pernas
finas, por sinal, ossos cobertos por uma pele escura.
Então me lembrei da Dilma, que perdeu a serenidade por causa do Obama. E
do Obama, que perdeu a serenidade por causa da Merkel. Me lembrei do Sumo
Pontífice e daqueles que morreram com cheiro de santidade, satisfeitos por
ouvirem os pecados dos outros. Me lembrei das “cotas” para congressistas, vindas
de deputados e senadores, que só comparecem três dias por semana no parlamento,
e nos outros dias saem a viajar com o dinheiro dos que não
têm bolsa-família e trabalham toda a semana. Me lembrei que eles têm
residência, assessores, diárias, verbas extraordinárias, planos de saúde, e o
hospital Sírio Libanês pagos pelos mesmos
“sem bolsa”.
Me lembrei do Diego Costa, que saiu dum ânus de mundo chamado Lagarto,
em Sergipe, para Madrid, sacudindo o pó
das chuteiras para o Felipão e a CBF. Me lembrei dos ministros do Supremo, que
lá estão, no topo da pirâmide judiciária, porque têm “ilibada conduta”, mas se
aproveitam do contribuinte, viajando pelo mundo afora. Me lembrei das pessoas
que ficam brabas quando a gente diz que existem seres humanos que mereceriam
uma vida de cachorro, com direito à saúde, ao banho, ao perfume, à tosa, à internação, ao colo fofo da madame.
Me lembrei dos poetas que ganham páginas inteiras de jornais para falar de
coisas tão úteis quanto um chiclete mascado. Me lembrei do Sarney, do Fernando
Henrique e de todos os fardados da Academia de Letras que só servem para se
embriagar com a própria vaidade.
Me lembrei, enfim, de todas as grandezas e autoridades dos homens. Mas me
lembrei também de Deus que, seguindo a lei dos homens, “não bota todos os ovos
numa cesta só”, variando seus investimentos, com várias Igrejas. E aí pensei: talvez
tenha sido por causa delas que os mendigos deixaram de pedir esmolas nas
escadarias da catedral na saída da missa das dez, e passaram a dormir ao
relento. Mas nem “bolsa-família” recebem de Deus.
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