quarta-feira, 13 de novembro de 2013

TU, QUE ENLAÇAS NOSS’ALMA A JESUS *
João Eichbaum


Nós, os da missa das nove, aquela em que o padre Abílio Sponchiado, com sua voz de barítono italiano, caminhando pela nave maior da catedral e voltando de costas até a balaustrada, nos prometia o reino dos céus, jamais nos libertaremos da melodia que, desde aqueles remotos novembros, nos persegue: o hino da Medianeira. E nos persegue até negativamente, ou talvez, principalmente por isso: no domingo da romaria não havia a missa das crianças. Nosso programa dominical ficava riscado dos eventos religiosos.
Naqueles domingos, sempre em meados de novembro, nos poucos anos em que foi coadjutor da catedral o padre Abílio tinha que se preparar para a apresentação como “showman” do evento. Desde as oito horas havia missas para os peregrinos que se concentravam na catedral. Vinham trens especiais da serra e da fronteira, lotados de gente que tinha fé na Medianeira, e que ia Avenida Rio Branco acima, esperando, na catedral, o início da procissão.
E a melodia (sem violões e vozes desafinadas) entrava pelos ouvidos e se cristalizava em algum lugar especial do cérebro, de tal forma que, até hoje, jamais se decompôs.
Por essas coisas que o destino escreve e nos coloca como personagens para executar o seu “script”, conheci o padre Jorge Zanchi. Aquele bom velhinho, simpático, com voz de trovão e a cabeça dividida entre espaços brilhantes e cabelos brancos, era vigário em Vale Vêneto. Naquele paraíso escondido entre montanhas, varrido pelo vento norte de vez em quando, mas dono de uma paisagem que não se deixa escabelar por qualquer vento, o padre Jorge pastoreava as almas de buliçosos descendentes de italianos.
Foi ali, onde o sol sempre se esconde, ao final da tarde, por trás de alguma montanha, permitindo que a montanha da frente projete uma sombra dominadora sobre aquela, atrás da qual ele some, onde o silêncio é mais forte do que o luar nas noites frias de julho, e o azul do céu é incansável nas manhãs de primavera, foi ali que eu conheci o padre Jorge Zanchi.
Foi ali que eu soube: o padre Jorge Zanchi era o autor da melodia que me perseguia desde os novembros da minha infância. O padre Jorge, aquele que vinha assistir nossos jogos juvenis de futebol, nas tardes de domingo, e nos fazia morrer de rir com anedotas sobre políticos, era dessas pessoas de cuja capacidade Deus abusa, para fazer coisas maravilhosas, como o Hino da Medianeira.
No outro lado, quem assinou a letra dessa composição, não era um vigário ignoto, perdido num rincão qualquer desse Brasil. Dom Joaquim de Aquino Corrêa, conhecido como dom Aquino Corrêa, era uma figura badalada nas letras, na comunidade religiosa e na política. Arcebispo de Cuiabá, foi governador do Mato Grosso, e membro da Academia Brasileira de Letras, num tempo em que lá não entravam chinelões das letras. Orador respeitável, artista da palavra, domador da rima e da métrica na poesia, só dom Aquino foi capaz de produzir coisas maravilhosas como "foi sobre a tarde, quando o sol declina/hora divina das contemplações/hora do Gólgota, sublime hora/marcada outrora pelas redenções.”
E, para vivificar a emoção das romarias, lá está sempre a banda da Brigada Militar, em cujo  conjunto meu ambivalente companheiro de futebol, Jussiê Christofoli Ferreira, (devolve rechonchudinha a bola que lhe passo quadrada), extrai do trombone a alma dos mestres que partiram, e nos faz gostar mais da vida, esquecendo o mundo dos medíocres.

*Esta crônica está sendo publicada hoje no jornal A Razão, de Santa Maria. Ela é alusiva à romaria da Medianeira, lá realizada domingo passado, e representa uma homenagem do cronista à fé dos santamarienses.



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