quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

 MAL TRAÇADAS LINHAS...

João Eichbaum

 Se tivesse capacidade, eu escreveria um poema sobre aquele Natal que foi, a um só tempo, o princípio e o fim duma felicidade.  Na falta de poesia, vão essas mal traçadas linhas.
Quero falar, em primeiro lugar, do teu colégio. Que nem colégio era, a bem dizer. Tinha o nome de Orfanato. Orfanato São Vicente de Paula, um casarão liso, de arquitetura pobre, tingido de tristeza, na rua Silva Jardim. Ia de uma esquina à outra porque, além de orfanato, servia de asilo. Asilo “Padre Caetano”. Abrigava aqueles para quem a vida já havia passado do ponto, os que perderam a trilha e se encheram de desmazelos no corpo e na alma, despojados de afeto, abandonados na última curva do caminho.
As freirinhas que, para vencer na vida, só contavam com Deus, cuidavam de vocês e dos pobres velhinhos. Elas abrigavam vocês, que nunca tiveram lar ou o tiveram destruído pelos estragos impunes do destino, e lhes faziam as vezes de pai e mãe. E não com menor desvelo se dedicavam aos velhinhos, se ocupando deles como se ocupavam da própria alma, ou até mais do que isso, porque a alma não exige desvelos que desafiam o estômago.
 Eram as antigas irmãs de caridade que, ao invés de explorarem Faculdades disso e daquilo, faziam tudo por amor de Deus, naquela espera, sem desespero, pela eternidade.
E foi graças a uma delas, a que organizava o coral e tocava o harmônio, foi graças a ela, digo, que nos conhecemos. Não fosse ela, eu não teria ouvido a lindeza da tua voz, entre o terreno e o celestial, me fazendo tropeçar nos degraus do altar, com as galhetas na mão, justo no momento de servir o vinho para o padre José Gomes. Só porque, não resistindo à insistência daquele encanto, olhei para o coro, onde vocês, as meninas órfãs, cantavam. Tinhas o olhar fixo no altar, não por minha causa, é claro, quem seria eu para merecer o teu olhar, mas aí nossos olhos se encontraram e eu quase me estatelei aos pés do altar, com galhetas e tudo.
O coral cantava "O Maria concebida sem pecado", e tu eras a solista do primeiro verso. Desde ali, teu rosto de menina nunca mais saiu da frente dos meus olhos, tua voz nunca mais abandonou a melodia do "Maria concebida sem pecado" e transformou em palavras imortais aqueles versos saídos da tua boca.
E desde então, por muito tempo, o hino da Imaculada me adocicava a alma na solidão e me arrancava suspiros sem razões definidas, todas as vezes que eu passava na frente da capela do Rosário, ou entrava nela para acolitar a missa do padre José Gomes.
Só outra canção atingiu meu coração com a mesma força. Foi na última noite de Natal que te vi. Durante a comunhão, vocês, meninas, cantavam "Noite Feliz" e, cantando sempre "Noite Feliz", vinham em fila indiana, para receber a eucaristia, na direção da balaustrada, onde eu estava. E porque, enquanto ajoelhadas, vocês não podiam cantar, ocupadas em receber Jesus, a irmã do coral continuou tocando a canção de todos os Natais.
Então, foi ouvindo "Noite Feliz" que estivemos um muito perto do outro, e eu pude ver – juro pelo indizível nome de Deus que vi - aquelas lágrimas dançando sobre a cor de pêssego dos teus olhos.
Mesmo com o tremor no queixo e o caroço na garganta, não sucumbi ao aluvião das lágrimas naquele momento.  Mas só naquele momento, porque, até hoje, desrespeitando o tempo reservado aos esquecimentos, não deixo de chorar por ti, em cada noite de Natal.



Um comentário:

Gigi disse...

Linda a crônica, João Eichbaum. Não senti falta do poema de Natal. Repassei a crônica a muitos dos meus amigos. Continues em tuas "mal traçadas linhas", é o que nós, teus leitores, esperamos.