MAL TRAÇADAS
LINHAS...
João Eichbaum
Se tivesse
capacidade, eu escreveria um poema sobre aquele Natal que foi, a um só tempo, o
princípio e o fim duma felicidade. Na
falta de poesia, vão essas mal traçadas linhas.
Quero falar, em primeiro lugar, do teu colégio. Que
nem colégio era, a bem dizer. Tinha o nome de Orfanato. Orfanato São Vicente de
Paula, um casarão liso, de arquitetura pobre, tingido de tristeza, na rua Silva
Jardim. Ia de uma esquina à outra porque, além de orfanato, servia de asilo. Asilo
“Padre Caetano”. Abrigava aqueles para quem a vida já havia passado do ponto,
os que perderam a trilha e se encheram de desmazelos no corpo e na alma,
despojados de afeto, abandonados na última curva do caminho.
As freirinhas que, para vencer na vida, só contavam
com Deus, cuidavam de vocês e dos pobres velhinhos. Elas abrigavam vocês, que
nunca tiveram lar ou o tiveram destruído pelos estragos impunes do destino, e
lhes faziam as vezes de pai e mãe. E não com menor desvelo se dedicavam aos
velhinhos, se ocupando deles como se ocupavam da própria alma, ou até mais do
que isso, porque a alma não exige desvelos que desafiam o estômago.
Eram as antigas
irmãs de caridade que, ao invés de explorarem Faculdades disso e daquilo, faziam
tudo por amor de Deus, naquela espera, sem desespero, pela eternidade.
E foi graças a uma delas, a que organizava o coral e
tocava o harmônio, foi graças a ela, digo, que nos conhecemos. Não fosse ela,
eu não teria ouvido a lindeza da tua voz, entre o terreno e o celestial, me
fazendo tropeçar nos degraus do altar, com as galhetas na mão, justo no momento
de servir o vinho para o padre José Gomes. Só porque, não resistindo à
insistência daquele encanto, olhei para o coro, onde vocês, as meninas órfãs,
cantavam. Tinhas o olhar fixo no altar, não por minha causa, é claro, quem
seria eu para merecer o teu olhar, mas aí nossos olhos se encontraram e eu
quase me estatelei aos pés do altar, com galhetas e tudo.
O coral cantava "O Maria concebida sem
pecado", e tu eras a solista do primeiro verso. Desde ali, teu rosto de
menina nunca mais saiu da frente dos meus olhos, tua voz nunca mais abandonou a
melodia do "Maria concebida sem pecado" e transformou em palavras
imortais aqueles versos saídos da tua boca.
E desde então, por muito tempo, o hino da Imaculada me
adocicava a alma na solidão e me arrancava suspiros sem razões definidas, todas
as vezes que eu passava na frente da capela do Rosário, ou entrava nela para
acolitar a missa do padre José Gomes.
Só outra canção atingiu meu coração com a mesma força.
Foi na última noite de Natal que te vi. Durante a comunhão, vocês, meninas,
cantavam "Noite Feliz" e, cantando sempre "Noite Feliz",
vinham em fila indiana, para receber a eucaristia, na direção da balaustrada,
onde eu estava. E porque, enquanto ajoelhadas, vocês não podiam cantar, ocupadas
em receber Jesus, a irmã do coral continuou tocando a canção de todos os
Natais.
Então, foi ouvindo "Noite Feliz" que estivemos
um muito perto do outro, e eu pude ver – juro pelo indizível nome de Deus que
vi - aquelas lágrimas dançando sobre a cor de pêssego dos teus olhos.
Mesmo com o tremor no queixo e o caroço na garganta, não
sucumbi ao aluvião das lágrimas naquele momento. Mas só naquele momento,
porque, até hoje, desrespeitando o tempo reservado aos esquecimentos, não deixo
de chorar por ti, em cada noite de Natal.
Um comentário:
Linda a crônica, João Eichbaum. Não senti falta do poema de Natal. Repassei a crônica a muitos dos meus amigos. Continues em tuas "mal traçadas linhas", é o que nós, teus leitores, esperamos.
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