NO MEU TEMPO
João Eichbaum
Não se pode deter a marcha evolutiva do
homem. É impossível reduzir à estagnação o dinamismo da vida, provocado pelo
instinto gregário do animal humano.
A frase que todos repetem, quando a idade
começa a submeter o indivíduo a um sentimento de desconforto no meio em que ele
vive, atravessa os séculos: “antigamente era melhor” ou, “no meu tempo era
melhor”.
Na verdade, é a eterna insatisfação do
primata humano que o leva a criar condições para a evolução da humanidade: ele
nunca está contente com o que é, ou com o que possui.
Mas essa insatisfação, que é responsável
pelo saudosismo, pelos suspiros na invocação do passado, é produto também do
instinto predatório.
O animal humano é o predador de si mesmo,
por exigência da própria natureza e ele cumpre essa missão sem se dar conta de
que está cumprindo um papel que o dinamismo do universo impõe. Exatamente por
isso não há lugar para a estagnação no universo do animal humano.
Se isso fosse possível, a Santa Maria de
hoje seria a mesma de antigamente. E a Santa Maria de antigamente tinha outros
costumes, cultivava outros valores.
Havia os cinemas. Os cinemas Independência
e Imperial, e mais tarde, o Glória. Nos domingos de tarde, as “matinées”
reuniam a criançada para ver desenhos ou seriados. Nas sessões vespertinas lá
iam os casais, de braços dados, ver filmes românticos ou épicos.
Mas, cinemas não eram o bastante para os
enamorados. A música, o aconchego nos braços da pessoa amada, ao som de um
tango, de um bolero, de uma valsa ou de um importado “foxtrot”, era uma etapa
quase obrigatória no curso da vida de muita gente. E para isso havia lugar em todas as camadas
sociais, em todos os grupos congêneres. O Caixeiral, o Esportivo, a Associação
dos Ferroviários, eram alguns dos muitos clubes espalhados pela cidade.
Todos os clubes tinham salões arejados,
com enormes janelas, onde as cortinas dançavam, seguindo a coreografia do vento.
Não havia aparelhos de som, nem essa parafernália de luzes cintilando em todos
os cantos. Os músicos desempenhavam sua arte, sem necessidade de instrumentos
que lhes disfarçasse a pouca aptidão. Porque na arte daquele tempo não havia
lugar para incapazes. O cantor exibia a sua voz sem truques, os
instrumentalistas, escorados unicamente no domínio que tinham sobre seus
instrumentos, eram verdadeiros mestres.
Mas, o homem, a serviço de sua vocação de
predador, evoluiu também nesse campo. E inventou aparelhos potentes de som,
truques de voz, “playback” e até pirotecnia em ambientes fechados. E passou a
espremer-se em espaços exíguos, escuros, irrespiráveis. Substituiu a arte pela
técnica, exorcizou os cabarés e implantou as baladas.
Hoje, Santa Maria ainda chora, como nunca
chorou em sua história. Entregue ao curso da evolução, permitiu que se
instalassem inferninhos tarja-preta, escuros e calafetados, no lugar dos clubes
iluminados, bum-bum-bum no lugar da música, fogo no lugar da expressão corporal
do artista - receita que desandou em mais de duzentas mortes.
A
esperança é de que a imolação das vítimas da Kiss não tenha servido apenas de
tema para a epifania da existência perdida, mas sim de alavanca para extirpar a
ganância, a irresponsabilidade e o desrespeito pelo homem.
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