quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

VAYA CON DIOS
João Eichbaum

"Agora me sinto como um animal apaziguado pela certeza de que Deus não existe" - me disse, com a voz semitonada por causa dos soluços, que não conseguia conter, quando me sentei na frente dele. “Estou chorando - prosseguiu- desde que você tocou Le Lac de Côme, e quando pensei que ia parar, lá veio você com La Golondrina”. Parou de falar e pegou um guardanapo, para enxugar as lágrimas penduradas nas narinas.
 Eram duas e meia da madrugada. Pouco antes, músico da noite, eu já havia desligado o teclado e me levantava para tirar o fio da tomada, quando ouvi a voz pastosa: "por favor, moço, só mais uma, a última, Vaya con Dios”. Tinha ficado na dúvida, não sabia se o homem queria o bolero Vaya con Dios, ou se usava a expressão, para que eu me despedisse com uma saideira qualquer. Fiz sinal de positivo com o polegar e, de pé mesmo, comecei a executar o imortal bolero. Ao olhar para ele, perscrutando em seu rosto o efeito da música, deparara com aquele caco de criatura humana. Ao invés de levantar o copo de cerveja, em sinal de alegria, como todo o bebum, quando se lhe atende o pedido, aquele senhor estava com a cabeça baixa apoiada nas mãos. Chorava.
Sem olhar para o teclado, preferi, enquanto tocava, contemplar aquela criatura afogada na tristeza, me passando sentimentos que partitura nenhuma conseguiria transmitir. Devia ter perto de oitenta anos. O ar de profeta e os bastos cabelos brancos que lhe despencavam pelas orelhas, não eram suficientes para esconder o brilho daquela área descoberta, no meio da cabeça. Ficara imóvel, petrificado, até o último acorde do Vaya con Dios, que com toques leves fiz sumir aos poucos, como um navio que se afasta do cais. Tal como sua expressão de tristeza me inspirava, em tom de despedida. Depois me aproximei, peguei-lhe ambas as mãos, onde apareciam mais veias do que pele e quase lhe ordenei, com firmeza, fixando-o nos olhos cinzentos e opacos, dominados pelas lágrimas: “fale”.
 “Naquela manhã – disse ele, tornando a baixar a cabeça - eu tinha mandado um bilhete de despedida para ela, dizendo que iria deixá-la. Mandei o bilhete, não tive coragem de fitá-la, covarde que fui. Então, ao anoitecer, sabendo que ela iria para a sessão do Cine Clube, me esgueirei por entre os cinamomos de sua rua, para vê-la pela última vez. Resolvera dar cabo daquela encarniçada paixão em que um só pensava no outro, porque achava que Deus estava me chamando para ser padre, mas não porque tivesse deixado de amá-la. E a vi de costas, ao lado do irmãozinho que lhe servia de companhia. Então, pouco antes de ter ela desaparecido na primeira esquina, começou a soar, de um rádio qualquer, essa música que só me faz chorar, Vaya con Dios. Fui para o seminário, me tornei padre, apesar da saudade dela, que sempre me torturou. Trinta anos depois, fui chamado no Hospital Santa Rita para dar uma extrema-unção.”
Aí ele parou, dominado pelo soluço. A custo, foi gaguejando: “era ela, a menina que, no nosso primeiro encontro havia tocado para mim o Le Lac de Côme... a menina que me fazia chorar no seminário, ouvindo La Golondrina…aquela que vi de costas, pela última vez, ouvindo Vaya Dios...lhe dei a extrema-unção...ela morreu, e Deus morreu com ela...”
Antes que eu lhe pedisse para contar tudo, desde o começo, levantou-se, senhor de si, pagou a conta e saiu. E, com os ombros encolhidos, quase escondendo a cabeça branca, desapareceu na névoa que provinha do mar e amortecia a luz das lâmpadas da rua.




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