quarta-feira, 23 de abril de 2014

O HOMEM
João Eichbaum


O homem inventou a filosofia, para se conhecer a si e a suas circunstâncias. De nada adiantou, porém. Já se gastaram rios de tinta e montanhas de papel, com filósofos misturando poesia e metafísica num gongorismo intragável, ditando teorias. Mas o homem ainda não sabe a que veio. Noves fora os prazeres da vida, porque a dor não conta como vida.
A única certeza que se tem - e isso graças à biologia, e não à filosofia - é de que o homem é um animal. Como todos os outros animais, gregário, mas contraditoriamente egoista. E como nenhum outro animal, racional, mas, hipócrita e imprevisível.
Em compensação, há algumas criaturas que emprestam dignidade a essa raça egoista dos bípedes batizados e cristãos.
Nesses últimos quinze dias, tivemos exemplos gritantes que, mais do que hipóteses ou blablablá filosófico, são constatações.
Um jovem da periferia de São Leopoldo, que ganha a vida em serviços gerais e mora com a mãe numa casinha de duas peças, nos fundos da casa de uma tia, encontrou na rua o que, para ele, era uma fortuna: seiscentos reais. Entre as cédulas, havia uma conta que vencia naquele dia. Sem se deixar atarantar pela deslealdade, procurou uma lotérica e fez o que São Tomaz de Aquino e outros filósofos nunca fizeram: pagou a conta. Depois, preocupado com a angústia da pessoa que havia perdido o dinheiro e o documento, tratou de localizá-la. Conseguiu através de amigos nas redes sociais, encontrou-se com a dona do dinheiro e lhe devolveu os cinqüenta centavos que haviam sobrado.
Um morador de rua, penalizado com um cachorrinho perdido, magro e faminto, adotou-o, passando a repartir com ele a proteção de marquises e viadutos e os restos de comida catados no lixo. Semana passada adoeceu e foi levado para o hospital. Algum tempo depois, ofegante, mas sacudindo o rabinho, lá chegava também o quadrúpede sem batismo no hospital. Ficou junto à porta, respeitando os próprios limites, por horas e horas, até que deram conta de sua presença. Atraindo a misericórdia dos funcionários do hospital, lá foi alimentado e dessedentado. Para que não ficasse ao relento, alguém o encaminhou a um canil. Mas, ninguém sabe como, de lá fugiu o bichinho e retornou para o hospital. Agora, como medida terapêutica para o dono, os médicos permitiram que o cão lhe faça companhia por quinze minutos cada dia. Nesses momentos, a emoção transborda num e noutro, e se abraçam como velhos e bons amigos, que só sabem falar a linguagem da fidelidade.
Um menino de doze anos, saudável e benquisto, cujo único defeito era se queixar da saudade que o mortificava desde a morte da mãe e de falta de afeto, foi assassinado. Não por facínoras profissionais. Foi assassinado por algum bípede cristão que, em dignidade, não chega aos pés do cachorrinho perdido; em honestidade, fica longe  do jovem  de São Leopoldo, que deu para a vida o que a vida lhe negou. Foi assassinado para aplacar o demônio das paixões e das ambições, que não infetam os quadrúpedes, mas infestam este mundo povoado de madrastas e brancas de neve.



Um comentário:

Gigi disse...

Hoje me encontrei com uma pessoa que admiro, Humberto Gabbi Zanata, que me veio logo com o comentário: como escreve bem esse Eichbaum! Concordei com ele, especialmente no dia de hoje, na publicação dessa crônica em nosso jornal local. Continue escrevendo, meu caro Eichbaum!