O HOMEM
João Eichbaum
O homem inventou a
filosofia, para se conhecer a si e a suas circunstâncias. De nada adiantou,
porém. Já se gastaram rios de tinta e montanhas de papel, com filósofos
misturando poesia e metafísica num gongorismo intragável, ditando teorias. Mas
o homem ainda não sabe a que veio. Noves fora os prazeres da vida, porque a dor
não conta como vida.
A única certeza que se
tem - e isso graças à biologia, e não à filosofia - é de que o homem é um
animal. Como todos os outros animais, gregário, mas contraditoriamente egoista.
E como nenhum outro animal, racional, mas, hipócrita e imprevisível.
Em compensação, há
algumas criaturas que emprestam dignidade a essa raça egoista dos bípedes
batizados e cristãos.
Nesses últimos quinze
dias, tivemos exemplos gritantes que, mais do que hipóteses ou blablablá
filosófico, são constatações.
Um jovem da periferia
de São Leopoldo, que ganha a vida em serviços gerais e mora com a mãe numa
casinha de duas peças, nos fundos da casa de uma tia, encontrou na rua o que,
para ele, era uma fortuna: seiscentos reais. Entre as cédulas, havia uma conta
que vencia naquele dia. Sem se deixar atarantar pela deslealdade, procurou uma
lotérica e fez o que São Tomaz de Aquino e outros filósofos nunca fizeram:
pagou a conta. Depois, preocupado com a angústia da pessoa que havia perdido o
dinheiro e o documento, tratou de localizá-la. Conseguiu através de amigos nas
redes sociais, encontrou-se com a dona do dinheiro e lhe devolveu os cinqüenta
centavos que haviam sobrado.
Um morador de rua,
penalizado com um cachorrinho perdido, magro e faminto, adotou-o, passando a
repartir com ele a proteção de marquises e viadutos e os restos de comida
catados no lixo. Semana passada adoeceu e foi levado para o hospital. Algum
tempo depois, ofegante, mas sacudindo o rabinho, lá chegava também o quadrúpede
sem batismo no hospital. Ficou junto à porta, respeitando os próprios limites,
por horas e horas, até que deram conta de sua presença. Atraindo a misericórdia
dos funcionários do hospital, lá foi alimentado e dessedentado. Para que não
ficasse ao relento, alguém o encaminhou a um canil. Mas, ninguém sabe como, de
lá fugiu o bichinho e retornou para o hospital. Agora, como medida terapêutica
para o dono, os médicos permitiram que o cão lhe faça companhia por quinze
minutos cada dia. Nesses momentos, a emoção transborda num e noutro, e se
abraçam como velhos e bons amigos, que só sabem falar a linguagem da
fidelidade.
Um menino de doze anos,
saudável e benquisto, cujo único defeito era se queixar da saudade que o
mortificava desde a morte da mãe e de falta de afeto, foi assassinado. Não por
facínoras profissionais. Foi assassinado por algum bípede cristão que, em
dignidade, não chega aos pés do cachorrinho perdido; em honestidade, fica longe do jovem
de São Leopoldo, que deu para a vida o que a vida lhe negou. Foi
assassinado para aplacar o demônio das paixões e das ambições, que não infetam
os quadrúpedes, mas infestam este mundo povoado de madrastas e brancas de neve.
Um comentário:
Hoje me encontrei com uma pessoa que admiro, Humberto Gabbi Zanata, que me veio logo com o comentário: como escreve bem esse Eichbaum! Concordei com ele, especialmente no dia de hoje, na publicação dessa crônica em nosso jornal local. Continue escrevendo, meu caro Eichbaum!
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