sexta-feira, 13 de junho de 2008

COISAS DA VIDA

O “SANTÍSSIMO”
João Eichbaum

Para enganar a morte e fingir que está começando tudo de novo, a gente, quando fica velho, gosta de voltar aos tempos de criança.
Foi o que fizemos, um grupo de ex-alunos da Escola Rainha dos Apóstolos, de Vale Vêneto. Reunimo-nos em Santa Maria, para recordar aqueles tempos do começo de nossas vidas. Com missa em latim e tudo o mais. Pouco antes do horário marcado para a missa, começaram a chegar os ex-colegas, alguns de cabelos brancos, outros carecas, gente de cabelo pintado, mas todos com o rosto marcado pela passagem inexorável do tempo. Em poucos minutos havíamos formado uma horda de velhinhos contentes. E aí, é natural, a gente vira criança, ri, se abraça com tapas barulhentos nas costas, comenta essa passagem do tempo, que se vê só nos outros, porque temos espelhos mentirosos em casa. Sabe aquela mistura de disposição e alegria? O burburinho se torna inevitável.
E foi aí, no meio da nossa infantil alegria de velhos, que irrompeu no altar uma mulher, dessas que não tiram o sono de ninguém, uma encalhada vestida de freira, sem bunda, sem trato nenhum na periquita, reta como tábua de passar roupa e, autoritária, nos passou o maior esculacho, pedindo silêncio, em respeito ao “Santíssimo”.
Para quem não sabe, explico o que vem a ser o “Santíssimo”. Diz a Igreja Católica que, na missa, ocorre o fenômeno da transubstanciação. O padre pega o vinho, que um acólito lhe entrega, e mais as hóstias, feitas com farinha e água, sem sal, e faz disso tudo o “corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo”. A isso é que se chama de transubstanciação. O que sobra das hóstias que o povo cristão não consome na “eucaristia”, chamada também de “comunhão”, fica num cálice revestido em ouro, que é guardado numa espécie de armário, chamado de tabernáculo, no altar.
A essas hóstias, ditas consagradas, se chama “Santíssimo”. Então o “Santíssimo” outra coisa não é, para os crentes católicos, senão o próprio Jesus Cristo vivo, em carne e osso, embora a gente seja levado a pensar que, sem o sangue, que foi consumido pelo padre, é um pouco difícil viver.
Mas, seja como for, Jesus Cristo é o “Santíssimo”.
Ora, pelo que se sabe, através do novo testamento, escrito pelos evangelistas Lucas, Mateus, João e Marcos, o “Santíssimo” freqüentava festas e bebia vinho. E quando faltava vinho ele dava um jeito. E gostava de mulheres. Por exemplo, conta Marcos, no capítulo 14, versículos 3 e seguintes, que estando o dito “Santíssimo” na casa de um tal de Simão, onde fora convidado para jantar, chegou-se a ele uma mulher com um vaso de alabastro e um ungüento de nardo puro, quebrou o vaso e lhe derramou o ungüento sobre a cabeça. Quando o pessoal reclamou do desperdício, o “Santíssimo” pediu que deixassem a mulher em paz, por que ela lhe havia feito uma obra boa – qual é, galera, a mina tá na dela!
Também tem aquele caso da Marta e da Maria, em cuja casa o “Santíssimo” havia dado um chego, segundo conta Lucas no capítulo 10, versículos 38 e seguintes. Enquanto a Marta foi tratar das lides da casa, a Maria ficou ali perto dele, curtindo o “Santíssimo”. É claro que a Marta não gostou e foi reclamar: “senhor, eu tô aqui dando duro e a Maria, numa boa, sem fazer nada, só do teu lado”. Aí “Santíssimo”, que estava bem no clima, se divertindo na companhia da gata, retrucou, dizendo que a Maria tinha feito a melhor escolha, da qual não seria privada – ela tá na maior curtição, pô, deixa rolar!
Quer dizer, o “Santíssimo” gostava mesmo de mulher. Claro, ele tinha também o lado “piradão”, de rogar praga pra uma pobre figueira que estava sem frutos, (Marcos, 11, 14) e de descer o cacete em camelôs sem alvará (Mateus, 21, 12).
Em suma, o “Santíssimo” era um cara normal, como qualquer um de nós, que gosta de vinho, mulher e festa e, de vez em quando, perde a classe. No geral, era um cara de bem com a vida, que jamais exigiu silêncio para ser respeitado.
Nada disso ensinaram nas aulas de catequese para a freira aquela, que nos tratou como vacas profanas, como se nós, velhinhos broches, tivéssemos culpa por ela nunca ter sido comida. Mas, no próximo encontro, se ela não tiver tido tempo para se suicidar até lá, tenho certeza de que vou vê-la feliz. Além de flores e chocolate, vou lhe mandar, na véspera, um vibrador.

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