terça-feira, 17 de junho de 2008

COLUNA DO MÁRIO SIMON

PRESSENTIMENTOS
Mário Simon

- Ele tinha a minha idade – falou baixinho Alberto depois de minutos em silêncio diante do túmulo.
Na entonação da voz havia mais do que uma constatação: uma denúncia, detalhe que não passou despercebido pela mulher, Dora, que sempre o acompanhava ao cemitério. Ela conhecia aquele silêncio a que Alberto se impunha sempre que visitava o jazigo do pai anualmente. Tanto conhecia que nunca se preocupara com o que o marido pudesse estar pensando nessa quietude. Afinal, há vinte anos que o sogro partira e há vinte anos que esta cena se repetia. Rezar? Não, Alberto não rezava nunca! Mas, desta vez, pareceu a Dora que o silêncio fora mais inquieto, mais profundo, cheio de significados expostos na superfície do semblante, na voz murmurada.
- Sessenta anos, Dora! – completou Alberto.
Ela achegou-se acarinhando o braço do marido sem dizer nada. Mas duas rugas entre as sobrancelhas de Dora determinaram o rumo do seu pensamento. Alguma coisa que doeu por dentro, talvez. Ou, talvez, um arrepio, um medo passando de cruzada por ali, uma visão de coisas que a gente não quer saber. E sem que se desse conta, um aperto foi cobrindo o coração da mulher.
Em casa, horas depois, ela escolhia um melhor momento para comentar com o marido o que a perturbava. As palavras ouvidas no cemitério batiam nas paredes da cozinha, da sala, do quarto que era por onde Dora ia e vinha sem motivo aparente. Naquela ansiedade, chegou a colocar uma chaleira com água para ferver, desligando as chamas do fogão logo em seguida.
Na sala de estar, Alberto examinava as manchetes de um jornal diante da televisão ligada. Dora julgou que era esse o momento de pôr um fim na sua crescente angústia, e sentou-se ao lado do marido. Temia retomar o assunto de forma errada, ou de jeito que Alberto não se interessasse. Finalmente, optou por ir devagar.
- O teu pai iria fazer oitenta anos no mês que vem, não é?
Alberto continuou calado, olhos nas manchetes, como se não tivesse ouvido o que a mulher dizia. De repente, largou o jornal sobre a mesinha de centro e, olhos nos olhos de Dora, falou pausadamente, mas firme, como que continuando a frase.
- E eu sessenta e um! Ele morreu aos sessenta.
Outra vez a mulher pode notar aquele tom de revolta nas palavras do marido. Pensou um instante e decidiu abrir-se de vez.
- E está com medo de morrer com a mesma idade?
Ele ficou surpreso, tal a seriedade com que a mulher fez a pergunta. Então entendeu o que estava acontecendo com Dora e seu vaivém nervoso. Não, não era isso, absolutamente, o que se passava no seu interior. Ela se enganara, confundira tudo. Por que teria medo de morrer agora? Só porque o pai se fora aos sessenta não significava que ele também morreria nessa idade. Não, nada disso! Achou que deveria corrigir o mal-entendido.
- Mulher, você entendeu tudo errado. O que eu quis dizer é que, com meus sessenta anos, faço tantas coisas e tenho tanto a fazer que me surpreende o que sinto. Comparo-me com meu pai porque tenho hoje a idade que ele tinha quando morreu. Papai me parecia mais velho do que eu sou com os mesmos sessenta, entende? E não se trata da conversa fiada de que juventude é uma questão de espírito! Me sinto jovem, mesmo! Veja, eu faço, ainda, praticamente tudo o que fazia há trinta anos atrás. Não enxergo no espelho a minha cara mais velha, nem sinto o meu corpo diferente de antes. Por isso acho que foi uma injustiça papai ter morrido aos sessenta anos. É isso! Qual é o problema!
Dora sorriu talvez aliviada. Passou as costas dos dedos carinhosamente no rosto do marido, uma, duas, três vezes. Não falou mais. Nem achava o que falar, entre confusa e decepcionada. Nunca imaginara que era assim que se sentia o marido, tão diferente dela. Tinha consciência de todos os problemas que seus cinqüenta e oito anos lhe trouxeram, a menopausa, a osteoporose, as rugas, as varizes doloridas. Por alguns momentos até invejou a maneira do marido sentir-se a si mesmo. Não estaria ela menosprezando sua própria capacidade de ainda viver a vida?
Logo depois, enquanto preparava algo para a janta, outra vez sentia bater nas paredes da cozinha, não mais as palavras que ouvira no cemitério, mas a explicação que Alberto dera. Se na hora soou otimista, agora uma nuvem sombreava devagar seu pensamento. E o que era, inicialmente, uma dúvida enfumaçada, foi ficando claro, dolorosamente claro: o marido enganava-se a si mesmo. Seria possível ao homem não perceber o próprio envelhecimento? Será que Alberto não se dava conta de seus passos mais lentos, da dificuldade para subir escadas, de amarrar os cadarços dos sapatos, de erguer pesos, de correr, da barriga exagerada? E o desinteresse para sair de casa, para passear, para ir a um restaurante? E o espaçamento cada vez maior na busca do sexo, antes sempre renovado? E as dores nas costas, nos braços, nas juntas dos dedos de que se queixava freqüentemente? E a hipertensão que identificara aos cinqüenta anos? E o pescoço e as costas das mãos cobertos de rugas, e rugas no rosto, e o cabelo grisalho? Sim, Alberto enganava-se a si mesmo, e isso não era bom! Estava envelhecendo, mas não aceitava.
O jantar, como de costume, aconteceu com poucas palavras. Ele sempre com o ouvido num noticiário que vinha de um radinho perdido entre os pratos. Ela, desta vez, não dava atenção para o locutor e observava o rosto, o jeito de comer, as reações do marido, para ela, tão de repente, um quase estranho ali na mesa. Tinha vontade de falar as coisas que a amarguravam, mas não encontrava coragem. E coragem não teve nessa noite. Alguma coisa mudava nela em relação ao homem que estava ali, inapelavelmente, profundamente. Não era mais o Alberto, seu marido, mas um ser frágil, inseguro, desorientado e muito mais velho do que sempre lhe parecera. Debalde tentou resistir à sensação de que a vida estava lhe aprontando coisas sobre o que não estava preparada. Pressentimentos de solidão, imagens tristes que tentava afugentar, uma aflição intensa sem que pudesse explicar por quê!
Nessa noite, na cama, quando se acordou no meio de pequenos pesadelos, prendeu a respiração por instantes para certificar-se de que Alberto dormia, e somente dormia.

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