domingo, 22 de junho de 2008

COLUNA DO MÁRIO SIMON

BENZEDURAS
Crônica de Mário Simon

Você não acredita? Como todo mundo, certamente que não, mas que, paradoxalmente, que sim! Benzedura é assim como as bruxas: no lo creo, pero que las hai, las hai!
Benzedura é coisa do tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça. Vem do antes tempo! De um tempo definitivamente enterrado pela cibernética. Aos poucos vão sumindo os velhos benzedores, as velhas curandeiras, as antiquíssimas senhoras que dominavam os mistérios dos cobreiros, das erisipelas, dos furúnculos encravados, dos unheiros e mijacões, dos sapinhos, dos panarícios, das espinhelas caídas, das bicheiras e barrigas d'água e de tantos dói-que-dói.
Mas você não acredita! Nem nunca ouviu falar em unheiro ou em mijacão. Estes também vão sumindo. Tomaram outros nomes, mudaram de endereço, transferiram-se para outras regiões. O mijacão, tão popular, para onde foi? Este, conheci-o bem, instalado que esteve na sola do meu pé direito no verão de 1946. Dizem que se pegava quando a gente pisava num local onde um cachorro havia mijado. Daí, talvez, o nome mijacão.
Primeiro era uma coceirinha do tipo bicho-de-pé. Depois, um ponto amarelado. Em seguida, uma dor infernal que obrigava o cristão a andar na ponta do pé. Então o remédio era colocar no local meio quilo de açúcar com banha de porco para chupar o furúnculo dolorido. Um mijacão equivalia a um trauma para o resto da vida, e não sabíamos. Até o coração mudava de lugar e batia, batia a noite toda lá na sola do pé.
Mas eu fui premiado, também, com um unheiro. Foi na ponta do indicador da mão esquerda. De repente não podia mais tocar em nada com esse dedo. Então surgiram mil remédios.
- O melhor que tem pra isso daí é enfiar o dedo no caldo de feijão fervendo até não agüentar mais.
Enfiei! Mas não comi o feijão. Os outros comeram porque não sabiam que eu havia praticado, no desespero, o remédio. Não adiantou, pois até pior.
- O feijão não resolveu? Mete o dedo na polenta quando está quase pronta. É muito melhor.
Não tive coragem. Não pelo dedo, mas pela polenta, tão cheirosa, bonita, redondinha na panela fazendo os últimos pluf-pluf. Foi aí que dei com uma benzedeira.
- Vem lá em casa antes do sol nascer.
Mal o horizonte branqueou, lá me fui depois que uma noite inteira apontando o dedo para o céu me convenceu pela metade. A outra metade do convencimento veio de uma velha empregada da casa que dizia:
- Que mal hai numa benzida?
A benzedeira me esperava com um mate já lavado de tão madrugador. Com um olho no céu e outro na cuia, a velha senhora cuidava o nascente. E quando os primeiros piscos do sol adentraram na sala, ela me levou até uma porta que dava para o astro da luz. Mandou-me que colocasse o dedo em brasa no batente e foi fechando a porta devagar como que para esmagar o indicador quando eu menos esperasse. Confesso que temi pela minha integridade física. Só não saí em debandada porque ela ia proferindo palavras ininteligíveis, apelando para almas perdidas e outras coisas de fogo e de sombras.
O sol avançava, me lembro. E quando ele arredondou inteiramente, a benzedeira disse:
- Pronto! Se continuar doendo, volte aqui amanhã. Caso contrário, reze três pai-nossos e três ave-marias para as almas do limbo.
Você não acredita? Nem eu acreditava. Mas não precisei voltar ao benzimento. A dor foi sumindo no correr do dia e, à noite, pude dormir como um frei gordo. O unheiro desapareceu em dois dias. O que não me lembro é se rezei a penitência imposta pela velha benzedeira.

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