terça-feira, 10 de junho de 2008

CRÕNICA DE MÁRIO SIMON

É com satisfação que anuncio, a partir de hoje, um novo integrante da equipe: Mário Simon, escritor, dramaturgo, historiador, professor de literatura, uma autoridade na história das missões jesuíticas. Seus textos dirão mais do que esta simples apresentação. À próxima crônica será aditada a lista de suas publicações.
Obrigado, Mário, pela tua contribuição.
João Eichbaum



A HONROSA ÚLTIMA VIDA DO GATO
Crônica de Mário Simon

Ele tinha sete! Já havia perdido seis. Restava-lhe a última, e essa tinha que ser bem vivida.
Assim pensava, talvez, um gato, cuja cor eu nunca soube, já que à noite todos os gatos são pardos. E a última vida desse gato e seu final honroso, eu a presenciei no escuro da noite sem lua e, pior, no mato.
Não sei muito sobre esse bichano. Conheci-o apenas por dois ou três minutos, os últimos de sua sétima e derradeira vida. Mas foi o suficiente para saber que ele escolhera com sabedoria e coragem seu final, já não sei ao certo se honroso ou doloroso. Vamos ver! Certo mesmo é que ele foi um dos peregrinos das Missões, o mais infeliz.
Peregrinos das Missões, você sabe o que é isso? Também conhecidos como caminhantes das Missões, vêm de todas as partes do mundo e, em pequenos grupos, fazem a pé, faça barro ou haja pó, até 300 quilômetros pelas trilhas do Caminho das Missões. De São Borja a Santo Ângelo, passando por todas as antigas reduções, hoje ruínas em pedra e mato. Para muitos deles é um hobby, para outros, uma aventura, e para alguns mais, um desafio de limites íntimos. Buscam o quê nestas plagas que viram o jesuíta e o guarani engolidos pela voracidade dos homens? Paz? História? Harmonização interior? Encontro consigo mesmos? Pagamento de promessas? No caso do gato peregrino de que trato nesta crônica, acho que buscava mesmo era comida, porque se ele caminhava para vencer seus próprios limites, se deu mal barbaridade!
Os caminhantes fazem sua última parada nos alojamentos do Balneário Parque das Fontes, próximo a Entre-Ijuís. Ali chegam ao escurecer depois de uma puxada de pó e cascalho pelo caminho antigo das ruínas de São João Batista-Santo Ângelo. Aporreados! Batidos! Clamando por um banho salvador. E por incrível que pareça, animados por um astral que supera as bolhas nos pés, cãibras nas pernas, as dores nas costas, os dedos em cacos, calcanhares em pandarecos. Mas vivos, incrivelmente dispostos para a próxima jornada. E riem, e cantam, e contam. E choram! O gato, coitado, veio junto, num desses grupos. Não teve tempo nem de banho, nem de rir, nem de chorar. Mal deu para um miau!
Foi depois do triste acontecimento com o bichano que os caminhantes me contaram. O gato estava tomando um sol na frente de um rancho perdido na beira do caminho, próximo a São João Batista. Um peregrino do Ceará viu o gato e disse:
- Qui bécháno bónitu!
O gato, que entendia essa língua lá do Nordeste, levantou-se preguiçoso, olhou para o sol e viu que era cedo da tarde, olhou para o grupo de caminhantes que carregavam uma mochila nas costas e um cajado na mão e percebeu que era gente boa, resolveu integrar-se ao grupo e partir. No alto da primeira colina, voltou-se para trás e olhou demoradamente a paisagem de sua terra e concluiu que, decididamente, fizera uma boa escolha. Aqueles ares não mais serviam para nada já que ali deixara seis de suas sete vidas. Pois que a última iria viver longe dali, junto com os novos amigos, peregrinos das Missões, feliz para sempre.
E caminhou, caminhou, caminhou. Treze quilômetros, como um cachorrinho. Seria mesmo um gato? Esse bicho não costuma seguir assim a estranhos. Mas seguiu! E veio a tarde, e veio a noite, e veio a escuridão. E o gato atrás do grupo, fiel, meditabundo às vezes, alegre, outras. Só lhe faltava o cajado.
Os peregrinos entraram na área da pousada já noite feita. O gato junto. E como gente, à noite, desperta a atenção do cão de guarda, manso como um poste para os homens, mas despreparado para receber um gato peregrino, pensou, se é que pensou, em pedir os documentos para o bécháno, e este não tinha mais do que ouriçar-se todo assustando o cão. O ataque foi rápido e terrível. Foi nesse momento que conheci o tal gato peregrino, que passou por mim como um raio rumo a um matinho que havia por perto. O cão foi uma faísca de boca enorme e dentes tratados.
Quando chegamos para acalmar os ânimos dos dois, nada mais pudemos fazer. O bécháno perdia a sétima vida de forma honrosa, pois adquirira o status de peregrino e se inscrevia como o protomártir do Caminho das Missões.

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