quarta-feira, 10 de setembro de 2008

COLUNA DO PAULO WAINBERG

BARROQUICES ROCOQUIANAS
Paulo Wainberg



Sabe quanto tempo de sua vida você gasta piscando os olhos?
Esta transcendental questão científica percorreu os séculos ora inclinando-se numa direção, ora noutra, os sábios pesquisadores sofreram as perseguições do clero medieval, muitos outros foram sacrificados nas masmorras da Inquisição e alguns professores de filosofia, medíocres e frustrados porque nunca conseguiram ser filósofos, fizeram pouco da incógnita e a remeteram para um segundo plano na Teoria Geral do Conhecimento.
Finalmente, após a influência do Iluminismo Alemão, a ciência adonou-se da questão, arregaçou as mangas e foi à luta.
Duras batalhas foram travadas entre as diversas correntes de pesquisadores e estudiosos, sobretudo nos congressos internacionais que, por quase duzentos anos dominaram os noticiários e as discussões dos povos mundiais, em festas de casamento, bares e restaurantes, velórios e cabarés.
A mais célebre de todas as querelas aconteceu em meados do século XX, no Congresso Internacional de Ancara, na Turquia quando foi apresentado pelo grupo de cientistas dominante o resultado final de uma pesquisa realizada em todo planeta que envolveu mil milhões de pesquisados: o tempo que se gasta piscando os olhos é equivalente ao tempo que dura a vida do indivíduo.
Orgulhoso com a conclusão, o chefe da equipe de cientistas preparava-se para receber a consagradora salva de palmas dos congressistas quando um jovem, não mais de vinte e sete anos, dinamarquês de nascimento mas ioguslavo por opção, ergueu o dedo indicador da mão direita e, timidamente pediu a palavra.
Convidado para subir à tribuna, o jovem cientista declarou que ousava discordar do eminente colega porque, segunda suas próprias e individuais pesquisas, enquanto dorme ou quando está em estado de coma, o indivíduo não pisca. E esse tempo – que ele denominou de “não-pisco” – deveria ser descontado e só assim ter-se-ia o valor exato do tempo que se gasta, durante a vida, piscando os olhos.
O tumulto foi imediato! Os cientistas ali reunidos começaram uma discussão simultânea, cada uma falando no idioma de origem enquanto os flashes espoucavam, os repórteres corriam aos telefones e as televisões, incipientes na época, gravavam e transmitiam o bochincho com peculiar volúpia informativa.
Uma das coisas mais maravilhosas da Ciência consiste exatamente nisso: quando tudo parece descoberto, legislado e definitivamente assentado, eis que uma nova descoberta é feita e aquilo que parece terminado volta ao início.
O resultado daquele Congresso é que, nos anos e décadas seguintes, a Ciência tratou de descobrir se o indivíduo adormecido, em coma ou simplesmente de olhos fechados pisca ou não.
É bom esclarecer, para que não pairem dúvidas conceituais, que o tema abrangia apenas o campo da piscagem normal excluindo-se, por exceções, os portadores de cacoetes ou rictos faciais. Estes estavam fora, o assunto lidava apenas com a função biologicamente concebida de piscar os olhos com naturalidade. Outras hipóteses foram consideradas forçação de barra destinada a tumultuar a pesquisa.
Após exaustivo trabalho que contou com a abnegação inenarrável de cientistas em todo o planeta, muitos deles sofreram ações de divórcio porque jamais iam jantar em casa, a Ciência finalmente concluiu que o indivíduo em coma, adormecido ou de olhos fechados, pratica o, como denominaram, micro-pisco, uma espécie de piscagem latente, imperceptível a olho nu mas flagrado através dos mais sensíveis microscópios e aparelhos de ultrassom, ressonância e dedos polegares roçando pálpebras durante intermináveis horas, dias após dias.
Pouco mais de uma década depois, com o avanço tecnológico cibernético, revelou-se a ocorrência do, como foi denominado, “nano-pisco”, fenômeno que perdura por algumas horas após a morte do indivíduo.
Esta revelação desabou sobre a Humanidade como se as neves do Himalaia derretessem instantaneamente: o indivíduo gasta a totalidade de sua vida piscando os olhos e um pouco mais.
O primeiro trabalho científico decorrente foi um artigo publicado no Science Magazine do Memorial Institute of Science de Boston. Nele o articulista afirmava que se parássemos de gastar nosso tempo piscando os olhos viveríamos o dobro do tempo e um pouco mais, isto é, aquelas horas adicionais em que o “nano-pisco” continua operacional.
“Pare de piscar”, propunha o cientista, “e ganhe tempo de vida”. Algo semelhante ao que, décadas antes, fora proposto por outro cientista: se abandonarmos o hábito de dormir, ficaremos três quartos do nosso tempo de vida a mais, acordados.
O bafafá foi geral. Aqui e ali começaram a pipocar perguntas dramáticas: quanto tempo de nossa vida perdemos na fila do banco? Quantos segundos preciosos de nossa existência são gastos assoando o nariz? Quantas horas acumuladas de vida desperdiçamos em pé, no corredor do avião, carregados de pacotes, aguardando que as portas da aeronave se abram?
Aos poucos a Humanidade foi percebendo, não sem crescente melancolia, que gastamos o tempo que nos é destinado na vida com tantas coisas que o que sobra para viver é mínimo, insignificante, vários dígitos abaixo do zero na relação custo-benefício.
Algumas mentalidades mais pobres, espiritualmente falando, resolveram que, como tudo era desperdício de tempo, quanto tempo se perdia transando?, e iniciaram um movimento – com apoio religioso integral – para que se incluísse, como cláusula pétrea da Constituição, a limitação da prática do sexo em uma a cada cinco anos, definindo como crime hediondo o descumprimento da lei. Porém, à guisa de compensação, insistiam como obrigatória esta única relação sexual, a cada cinco anos.
O Senado viu a idéia com bons olhos mas rejeitou a idéia porque a coisa lá em baixo é outra.
Como tudo na vida é transitório, perder tempo piscando os olhos deixou de ser assunto porque em dois dias foi completamente esquecido pela mídia e, por conseqüência, pelo resto.
Mas a questão metafísica permanece: se depois de morto você continua piscando os olhos....?

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