A CATEDRAL DE SANTA MARIA
JOÃO EICHBAUM
No tempo em que não havia esse povo todo que se acotovela, à espera dos ônibus, nem existia também o vai-vem frenético do pessoal que anda à cata de produtos do Paraguai “made in China”, no camelódromo, a catedral dominava, com a inexplicável majestade do silêncio, as atenções de quem passava por ali, naquela parte da Avenida Rio Branco. A Avenida era a artéria que mais pulsava, no dia-a-dia da cidade, ligando a estação ferroviária à Praça Saldanha Marinho e à “primeira quadra”, o “ponto chique” do comércio, das meninas do colégio das freiras, que passavam com seus livros debaixo do braço, dos encontros movidos a suspiros, das rodas de cafezinho, onde se discutiam os sucessos e insucessos da dupla “Rio-Nal”.
A catedral ficava acima disso tudo e eram muito poucas as pessoas que, ao passarem na frente dela, deixavam de fazer o sinal da cruz. Era um templo que impunha sua presença, irradiando uma grandeza que se situava acima de seu sóbrio perfil arquitetônico. O repique de seus sinos, na hora do “angelus”, ao meio dia, nos dobres de finados, no tom festivo da missa das dez, dividia com o silvo das locomotivas os sons que a cidade mais conhecia.
Fruto da tenacidade e da liderança do padre Caetano Pagliuca, sacerdote palotino que, ainda jovem seminarista, deixou sua bela Itália e a família para evangelizar numa terra desconhecida, a catedral sempre foi referência na história de Santa Maria. Por suas naves e em sua abóbada passaram as mãos de outro italiano, Aldo Locatelli, que ali deixou marcada a melhor obra de que já se teve notícia nos domínios religiosos da cidade. Foram meses e meses de labor intenso, meticuloso e paciente, quando ele e os membros de sua equipe se entregaram àquela inspiração que rende emoções, até hoje, para quem se deixa arrastar pelas belezas da arte sacra.
Aos domingos, depois da missa das crianças, o ponto alto era a missa das dez, um acontecimento até mais social do que religioso, freqüentado pela elite da sociedade santamariense, os varões de terno e gravata, o público feminino exibindo o que de mais elegante ditava a moda. Paramentado com a capa de asperges, o “cura da sé”, Monsenhor Frederico Didonet, se dirigia do altar até a porta da catedral, borrifando com água benta o povo cabisbaixo, entregue à suntuosa força da liturgia (estrangulada, mais tarde, pelo Concílio Vaticano II), enquanto o Coral Santa Cecília, sob a batuta da professora Maria Martins entoava o solene “Asperges me”.
E aquele tom solene, quase apoteótico, marcava toda a missa, impregnava os circunstantes com um sentimento de que só é capaz a música dos grandes mestres e a voz dos grandes cantores, como o solo de João Isaia, cantando “Panis Angelicus”, de Cezar Frank.
Ainda mais emotivas, embaladas pelas melodias inesquecíveis que vinham pelas vozes do Coral Santa Cecília, eram as missas “do galo” A catedral então regorgitava de povo, ficava tomada até nos corredores. E o povo lá ficava, contrito, dominado pelo sentido do mistério, até o último acorde da “Noite Feliz”, interpretada num arranjo, certamente de autoria da professora Maria Martins, que incluía o “Gloria in excelsis”. Só então a multidão deixava a igreja, para inundar a Avenida Rio Branco, levando na alma e na voz a alegria incontida de mais um Natal.
Não sei que histórias constrói, hoje, essa catedral que outrora foi ponto de encontro do lírico e do religioso, do emocional e do místico, abrigo espiritual de uma comunidade que era feliz, enquanto vivia seus próprios valores, antes de ser desfigurada pela migração predatória.
(crônica publicada no jornal A Razão, de Santa Maria)
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
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