SECULARES
Paulo Wainberg
Ao contrário do que se pensa, Maquiavel não foi um preconizador e sim um retratista.
Vivendo na Itália renascentista, protegido pelos Médici e abandonado pelos Borgia, sua obra prima, O Príncipe, é uma constatação do exercício do Poder e não uma apologia de doutrinas pedagógicas para alcançá-lo e mantê-lo.
Ao afirmar que o Príncipe deve ser capaz de toda a crueldade de uma só vez para alcançar o “bem comum”, distribuindo as benesses das conquistas ao poucos para que pudessem ser devidamente apreciadas, consagrou, como princípio, aquilo que simplesmente percebia na forma de agir dos governantes de seu tempo e dos que historicamente pesquisara: os fins justificam os meios.
Teve a coragem, como um observador imparcial, de separar a Ética da Política, colocando-as em planos distintos e incompatíveis entre si, como se uma fosse a contradição em termos da outra.
Aquilo que Maquiavel percebeu e descreveu é uma perfeita síntese do que chamamos de “sociedade organizada”, a metáfora perfeita para o exercício do cinismo e da hipocrisia dos governantes da circunstância, os poderosos da ocasião.
O todo poderoso do momento é o execrado na manhã seguinte, fugitivo e tratado como reles criminoso, assim que a roda da fortuna gira e o que estava no ápice chafurda na sarjeta.
Napoleão, da glória ao ostracismo. Stalin e Hitler, terroristas de Estado, do Poder Supremo à exemplos do nefasto, nefando e horrendo.
Ditadores pelo mundo, cuja vontade absoluta fazia tremer o mais poderoso general, fugindo esbaforidos para usufruirem, se possível, dos milhões amealhados no exterior.
Na sociedade religiosa a Ética estuda o Bem e o Mal, conceitos superiores que exigem personificação absoluta: Deus e Diabo.
Na sociedade humana a Ética estuda a prevenção, uma construção racional para fundamentar a Lei e o Direito em favor da defesa do benefício contra os ataques malignos da própria sociedade humana. O Bem e o Mal éticos pressupõem não divindades e demônios e sim o ser humano em conflito com ele mesmo.
É neste ponto que a contradição emerge de forma “maquiavélica”. Nessa linha de raciocínio o “bem comum” sobrepõe-se ao “bem individual”, o interesse coletivo sobrepuja o interesse do indivíduo que pode ser sacrificado em quantidade indefinida, desde que se proteja o “todo”.
Para o Direito Penal é preferível manter dez culpados soltos do que um inocente preso, numa aparente contradição pois esse princípio protege o indivíduo na sua contrapartida com a coletividade.
Ora, para a coletividade, é preferível prender os dez culpados mesmo que um inocente seja preso e aí reside o cinismo sem nenhuma metáfora que o sustente. Dez perigosos criminosos à solta fazem muito mais mal á sociedade do que um inocente preso,graças à um erro judiciário que, para o mundo ideal do Direito, é inconcebível.
É que o Direito, assim como a Ética, paira no plano ideal, isto é, no mundo das idéias que, quase sempre, está muito distante das realidades. Neste mundo ideal exige-se dez criminosos presos e todos os inocentes soltos, o triunfo permanente do Bem sobre o Mal, criando-se instrumentos idealizados para atingir tais desígnios, como os Tribunais, os Parlamentos e os Governos.
Ninguém foi tão cinicamente hipócrita quanto a sociedade americana, por exemplo, ao pregar em sua Constituição, a igualdade e, na prática, exercer a discriminação racial.
O contexto assim organizado conduz ao inevitável choque entre o plano das idéias e o plano da realidade: a corrupção.
Todo ato de corrupção parte de um mesmo princípio, aparentemente inocente e vestido de legalidade por todos os lados: promover o bem comum e, com isso, obter vantagens individuais.
Corruptos e corruptores acreditam que não estão prejudicando ninguém, que o resultado de seus atos beneficiará, trará proveitos, gerará riquezas e que não há mal algum em ganhar um pouco, em obter proveito próprio, afinal é trabalho e, como tal, merecer ser remunerado.
O corrupto institucional alega, em sua defesa, que não viu qualquer ilegalidade em seu ato e o corruptor manifesta firmeza de propósitos no sentido de beneficiar em geral, principalmente àqueles que precisam dos benefícios.
Estamos cansados de ouvir essas declarações nas CPIs e nos processos judiciais que, por força da corrupta sistemática processual, tornam-se fins em si mesmos, inócuos e inconseqüentes.
A corrupção, seja em que nível for, é uma violação ética, um afrouxamento dos conceitos de Bem e Mal, seja do ponto religioso, seja do ponto de vista humano.
Com idêntica lógica perversa repetem-se as campanhas anuais de solidariedade oficial. Campanha do agasalho é uma delas, ano a ano deflagrada em tempos de inverno e de frio. Os governos que se sucedem mantêm, em suas agendas, a busca por roupas quentes para distribuir aos pobres, mesmo as usadas, rasgadas, depauperadas e fora de moda. Porque o importante é que os pobres não sintam frio ou, ao menos, não sintam tanto frio quanto sentiriam, não fossem as providências de uma primeira dama, de um secretário de governo ou de um ministro de Estado.
Não tem importância nenhuma que os pobres vistam-se com andrajos, continuem pobres e que, ano que vem, ainda pobres, se beneficiem novamente da caridade institucional com a qual os governos compram as consciências da “sociedade civil”.
Por que não acabar com a pobreza? Por que não abdicar de conviver com a miséria, por que não dizer Basta! à desigualdade e proporcionar a todos os cidadãos a capacidade de agasalhar-se no inverno?
Porque os fins justificam os meios, simplesmente por isso. Porque é preciso ser cruel de uma só vez com alguns, em benefício de todos, como se alguns não pertencessem ao contingente de todos.
Porque a máquina contábil das oferendas e das distribuições de roupas e alimentos não pode ser interrompida, isso seria um fator menor de faturamento político, de alcance de votos e de projetos políticos antagônicos, a alardear a discrepância como se dela jamais tivessem feito parte.
Do Século XV de Maquiavel ao Século XXI de Bush, da Comunidade Européia, de Hugo Chaves, de Lula e de Osama Bin Laden, o Príncipe reina sem dó nem piedade, duela a quien duela, porque afinal de contas, disso sabemos todos, os fins justificam os meios.
O pior de tudo é: E adianta falar?
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