Janer Cristaldo
Começo com um esclarecimento. Quando falo do Cristo, não tenho a mínima idéia se existiu ou não. Há um hiato muito grande, de pelo menos quatro décadas, entre sua morte – ou suposta morte – e os primeiros relatos de sua vida. Ou suposta vida. Quanto mais leio, mais me convenço que foi criação dos evangelistas. O primeiro evangelho só surge após a segunda destruição do templo de Jerusalém pelo imperador romano Tito. Mais parece uma reação judia ao poder invasor que relato histórico. Seja como for, tenha existido ou não, Cristo existe para milhões de pessoas. Se era mito, o mito virou carne. Então, para efeitos de raciocínio, parto da suposição de que tenha existido.
Quando trabalhava na Folha de São Paulo, anos 80, publiquei artigo aventando a hipótese de que Cristo fosse homossexual. Ou hetero ou mesmo bi. Alguma sexualidade deveria ter o deus feito carne, ou humano não seria. Ou então seria assexuado. Mas assexuados são seres doentes. Ora, o Altíssimo não iria encarnar em alguém inepto para a vida. Daria uma péssima imagem da divindade. Como os Evangelhos nada dizem sobre o assunto, qualquer das hipóteses era admissível.
Escândalo nas hostes cristãos. Quando o telefone tocava na editoria, de modo geral era alguém me procurando. Para insultar-me, é claro. Em meio aos impropérios, só ouvi uma voz toda amorosa:- O senhor é homossexual?
Era a voz de um pastor evangélico. Respondi que minha sexualidade só a mim dizia respeito.
- Estou perguntando porque, se o senhor for homossexual, temos como curá-lo. Há vários ex-homossexuais em nossa igreja.
Só o que faltava. Já ouvi falar de ex-padre, ex-ministro, ex-deputado, ex-presidente, até mesmo de ex-comunista, ex-marido, ex-URSS, ex-Iugoslávia. De ex-homossexuais não tenho conhecimento. Pode até ser que existam, mas serão minoria. Se tenho prazer na homossexualidade, por que a ela renunciaria? Em nome de uma religião que abomina o sexo? Alguém que renuncia a seus prazeres em função de uma fé estúpida, só pode ser um retardado mental. O pastor subestimava minha inteligência.
Os tempos mudaram, e como! Comentei, no início deste mês, um aviso postado no site da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), que teria convocado simpatizantes a um evento em Brasília, programado para o dia 05 de junho, em que seriam queimados exemplares da Bíblia. Na página virtual, o texto dizia que "em frente à Catedral, nós ativistas LGBTT iremos queimar um exemplar da Bíblia Sagrada". Em seguida, a mensagem defendia que "um livro homofóbico como este não deve existir em um mundo onde a diversidade é respeitada".
Dia seguinte, o presidente da tal de associação, que reúne todas as sexualidades exceto a hetero, declarava que a convocação teria sido obra de hackers. Obra de hackers ou não, ela é coerente. A Bíblia condena os homossexuais à morte. Nisto em nada difere do Islã. Que, no fundo, é um universo profundamente homossexual, onde a mulher não tem lugar. Mas os machos muçulmanos têm dificuldade em lidar com isto. Ai de quem for flagrado fazendo o que todos fazem sem serem flagrados. Mas isto já é outro assunto.
Na ocasião, os organizadores da 15ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo já anunciavam a intenção de usar um dos mandamentos da Igreja, o “amai-vos uns aos outros" para condenar a tal de homofobia. Reverendos e seguidores da Igreja Anglicana do Brasil, além de fiéis de outras religiões, confirmaram participação na passeata.Dito e feito. Ontem, na dita Parada Gay, carros de som e camisetas traziam estampado o slogan. Acontece que o “amai-vos uns aos outros” não é achado da Igreja. É ordem do Cristo. Está nos Evangelhos. Mas Cristo nunca se pretendeu porta-estandarte da bicharada. Referia-se aos seres humanos em geral, sem distinção de sexo ou sexualidade. Mesmo que fosse homossexual ou por eles tivesse alguma simpatia, não ousou revogar a pena do livro antigo, a morte.
Este mandamento é, antes de mais nada, arbitrário e ditatorial. Por que razões sou obrigado a amar indistintamente os demais? Há tanta gente chata e mesmo abominável no mundo, que não merecem sequer nosso apreço. Segundo o mandamento cristão, teríamos de estender nosso amor a gente da laia de Lula, Sarney, Zé Dirceu, Renan Calheiros. Por que teria eu de oferecer amor a esta canalha? Esta frasezinha do Cristo, tida como de profunda sabedoria, a meu ver é demagogia barata de político em busca de votos.
Sem falar que, como perceberam Nietzsche e Kierkegaard, exclui o sentimento de amizade. Amizade é eleição, afinidade eletiva. Se tenho de amar o próximo, não sobra espaço para o amigo.Voltando à tal de parada. Se provoquei a ira sagrada dos cristãos quando aventei a possibilidade de Cristo ser homossexual, hoje – apenas 30 anos depois - esta hipótese é divulgada urbi et orbi pela televisão e pelos jornais. Não só o Cristo foi cooptado para apoiar a exótica fauna, como também alguns santos da Igreja, como São Sebastião e São João Batista, que apareciam seminus ao lado das mensagens em defesa da camisinha. O sofisma é primário. A Igreja nunca canonizaria quem fizesse a defesa do sexo não-reprodutivo.
A santa nudez chegou a escandalizar a pastora lésbica Andréa Gomes, de 36 anos, da Igreja Apostólica Nova Geração: "Não tinha necessidade de usar pessoas peladas para representar santos. Faz a campanha, mas não envolve as coisas de Deus". Pelo jeito, a moça nunca entrou num templo católico onde sempre encontramos não os santos, mas o próprio deus cristão, sempre peladão envolto numa toalha de sauna.
Ó tempora, ó mores! Cristo patrono das bonecas. A Igreja Católica subiu em seus tamancos. Para o cardeal d. Odilo Pedro Scherer, arcebispo de São Paulo, a colocação de cartazes com imagens de santos católicos em postes da Avenida Paulista foi "infeliz, debochada e desrespeitosa". Para o cardeal-arcebispo, o "uso instrumentalizado" das imagens por parte da organização do evento "ofende o sentimento da Igreja Católica".
Não tem muita autoridade para chiar. Se a Igreja apossou-se descaradamente do livro dos judeus, não pode queixar-se de que determinadas organizações, sociais ou sexuais, se apossem de sua iconografia.
Neste Brasil sincrético, onde tudo se funde e se mistura em um colossal panelão de incultura, Cristo virou definitivamente bicha.
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