A
CAIXA PRETA
João
Eichbaum
A
morte não tem caixa preta. Pelo contrário: ela é a caixa preta da nossa vida.
Ao morrermos, pessoas que não nos conheceram em vida saberão quem fomos, o que
fazíamos, de que vivíamos, se éramos casados, se tínhamos filhos, se tínhamos seguro de vida, funerais e
cremação pré-pagos, bens, etc.
O
agente funerário terá que saber isso, o oficial do registro civil, também.
Nossos dados pessoais irão para os arquivos ou escaninhos do Estado. Enfim,
alguém saberá que existimos e que deixamos de existir. Se aparecermos, com foto
e tudo o mais, no caderno de necrologia de algum jornal, até a mãe daquele bebê
produzido no embalo de uma noite na balada, poderá nos identificar e garantir
posteriormente na ação de investigação de paternidade: “foi ele”.
Se
formos famosos, todo mundo saberá de nós: onde nascemos, como subimos na vida,
como foi e com quem foi que vivemos, quais foram nossos pensamentos, nossos
propósitos, nossas frustrações, nossos defeitos, nossas virtudes, e tudo o mais
que despertar a curiosidade do público. A morte, nossa caixa preta, desvendará
como foi nossa vida, enfim.
Mas,
não servirá como caixa preta de si própria a nossa morte, se ela nos quiser
como protagonistas dum acidente aéreo. Ela deixará de registrar nossos dados a partir do momento em que
subirmos a escada do avião. Ficará como um ponto final aquela foto que nossa
amada bateu no celular, quando já nos dirigíamos para o portão de embarque. E
será o nosso último registro, nosso último sorriso, nosso último gesto de
despedida, sem a consciência de ter sido a despedida definitiva.
Se
nosso voo for num desses aviões pequenos, de dez lugares, fretados para
negócios ou eventos, não haverá aquela frescura de instruções sobre as saídas
de emergência e as máscaras de oxigênio, ou sobre uso da poltrona como objeto
flutuante, coisas que nunca salvaram a vida de ninguém.
O
avião levantará voo, tudo correrá bem até a hora de aterrissar. Mas aí o piloto
avisa que terá de arremeter e então sentiremos aquele desconfortável frio na
barriga, provocado não só pela subida brusca, como pelo medo. O avião balança,
o frio no estômago aumenta e a gente sente vontade de vomitar. Olha para os
lados e vê os companheiros pálidos, sem coragem para dizer palavra, moídos pelo
terror, de mãos postas ou se benzendo. O avião não consegue subir mais, e o que
sobe na frente dele são alguns edifícios. Numa manobra brusca a aeronave se
inclina, a gente perde o equilíbrio, tateia para se segurar em alguma coisa,
mas tudo está girando ao derredor. O avião perde a altura, mas não a
velocidade. O peso abissal do pavor, provocado pela loucura da morte, vence a
esperança. Uns choram, outros berram “meu Deus”!
Não
dá tempo de ouvir o estrondo porque, antes de nos deletar, a última coisa que a
morte nos mostra é o avião embicando na direção de um edifício.
Mas
nada disso registrará a caixa preta da morte. Nem a do avião.
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