quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O CALÇADÃO, A PRAÇA E A PANTOMIMA
João Eichbaum

No calçadão de Santa Maria vi os velhinhos de sempre, que só mudam de nome, de feições, de data de nascimento e, ainda que não sejam os mesmos, são os de sempre, discutindo suas incertezas e evidências sobre ética, política, futebol e mulher.
E as mulheres irrigam com todos os tons de beleza e graça o calçadão. Era “primeira quadra”, mas perdeu o nome porque se entregou ao modernismo das cidades que nunca tiveram a felicidade de ter uma “primeira quadra”. Por lá passam mulheres de todos os tipos e idades, as simpáticas, as bonitas, as loiras, as morenas, as brancas, as negras, as gordinhas e as elegantes, as de seio pra baixo e as de silicone.
Enquanto elas passam, algumas apressadas, outras fazendo parada obrigatória  na frente de cada vitrine, a sós ou em grupos, os velhinhos  as  seguem com o rabo do olho, para uma análise rápida, frontal ou de retrospectiva. Algumas passam imunes pelos julgamentos sumários. Mas as mais jovens, as de jeans colados, desenhando fielmente as formas que descem a partir dos quadris, essas não escapam aos vereditos da experiência, da baba e da respiração estorvada pela asma.
Já na praça Saldanha Marinho o cenário é outro. Ali se concentra o passado: os mesmos bancos, as mesmas árvores, como diz a canção. Ah, e o mesmo coreto. O coreto das retretas de domingo à noite, que atraia o povo em volta de dele, o povo da cidade e os viajantes retidos pelo descanso dominical da ferrovia.
O povo é outro: não empina o nariz, nem assume ares de rico. Não é o povo da Santa Maria ferroviária com seus habitantes e seus hóspedes. Não é o povo das retretas. Esse povo que eu vi na sexta-feira de tarde espalhado pela praça talvez nem saiba o que é retreta.
O povo que lota a praça é aquele que, no quinto dia útil de cada mês enche os bancos e as agências lotéricas, atrás da grana da aposentadoria e, nesse ínterim, faz compras, paga as contas, e descansa as pernas na praça Saldanha Marinho. É o povo que contribuiu com quatro salários mínimos para a Previdência, mas recebe só dois. E trava uma luta renhida com a vida, querendo viver: enfrenta a fila do SUS, fica na espera entre a hospitalização ou a morte, faz contas de chegada entre o que a vida lhe exige e o que ele lhe pode dar.
Na praça esse povo faz tempo, à espera do ônibus que o levará para casa ou simplesmente para se entregar ao incômodo exercício de pensar como chegará até o próximo quinto dia útil.
Entre o povo da praça e o povo do calçadão se instalam os que vivem da política e os que querem entrar na boquinha. Ali ficam prometendo fazer o que nunca fizeram e o que nunca hão de fazer. Botam na mão de distraídos passantes essas promessas escritas, num clima de feira e quermesse, com bandeiras e cartazes coloridos, tentando convencê-los de que são capazes de virar pelo avesso a verdade cotidiana dos impostos, dos assaltos e da irresponsabilidade pública em geral.
É esse corredor da pantomima que separa o povo da praça do povo do calçadão, sem os estorvos do trânsito.



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