O CALÇADÃO, A PRAÇA E A PANTOMIMA
João Eichbaum
No calçadão de Santa Maria vi os
velhinhos de sempre, que só mudam de nome, de feições, de data de nascimento e,
ainda que não sejam os mesmos, são os de sempre, discutindo suas incertezas e
evidências sobre ética, política, futebol e mulher.
E as mulheres irrigam com todos os
tons de beleza e graça o calçadão. Era “primeira quadra”, mas perdeu o nome
porque se entregou ao modernismo das cidades que nunca tiveram a felicidade de
ter uma “primeira quadra”. Por lá passam mulheres de todos os tipos e idades,
as simpáticas, as bonitas, as loiras, as morenas, as brancas, as negras, as
gordinhas e as elegantes, as de seio pra baixo e as de silicone.
Enquanto elas passam, algumas
apressadas, outras fazendo parada obrigatória na frente de cada vitrine,
a sós ou em grupos, os velhinhos as seguem com o rabo do olho, para uma análise
rápida, frontal ou de retrospectiva. Algumas passam imunes pelos julgamentos
sumários. Mas as mais jovens, as de jeans colados, desenhando fielmente as
formas que descem a partir dos quadris, essas não escapam aos vereditos da
experiência, da baba e da respiração estorvada pela asma.
Já na praça Saldanha Marinho o
cenário é outro. Ali se concentra o passado: os mesmos bancos, as mesmas árvores,
como diz a canção. Ah, e o mesmo coreto. O coreto das retretas de domingo à
noite, que atraia o povo em volta de dele, o povo da cidade e os viajantes
retidos pelo descanso dominical da ferrovia.
O povo é outro: não empina o nariz,
nem assume ares de rico. Não é o povo da Santa Maria ferroviária com seus
habitantes e seus hóspedes. Não é o povo das retretas. Esse povo que eu vi na
sexta-feira de tarde espalhado pela praça talvez nem saiba o que é retreta.
O povo que lota a praça é aquele que,
no quinto dia útil de cada mês enche os bancos e as agências lotéricas, atrás
da grana da aposentadoria e, nesse ínterim, faz compras, paga as contas, e
descansa as pernas na praça Saldanha Marinho. É o povo que contribuiu com
quatro salários mínimos para a Previdência, mas recebe só dois. E trava uma
luta renhida com a vida, querendo viver: enfrenta a fila do SUS, fica na espera
entre a hospitalização ou a morte, faz contas de chegada entre o que a vida lhe
exige e o que ele lhe pode dar.
Na praça esse povo faz tempo, à
espera do ônibus que o levará para casa ou simplesmente para se entregar ao
incômodo exercício de pensar como chegará até o próximo quinto dia útil.
Entre o povo da praça e o povo do
calçadão se instalam os que vivem da política e os que querem entrar na
boquinha. Ali ficam prometendo fazer o que nunca fizeram e o que nunca hão de
fazer. Botam na mão de distraídos passantes essas promessas escritas, num clima
de feira e quermesse, com bandeiras e cartazes coloridos, tentando convencê-los
de que são capazes de virar pelo avesso a verdade cotidiana dos impostos,
dos assaltos e da irresponsabilidade pública em geral.
É esse corredor da pantomima que
separa o povo da praça do povo do calçadão, sem os estorvos do trânsito.
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