O NÉRIO SABE DAS COISAS
O
contador de histórias, que era cego, no Hospital de Isolamento do Sanatório
Partenon
Um
emeil que o amigo de Sorocaba, Dr. Rogerio de Morais, mandou, com texto da
Martha Medeiros ( fillha de um grande amigo meu, dentista emérito) me faz
lembrar uma passagem triste de minha juventude.
Em
julho de 1957, nas férias de inverno, em Antonio Prado, não sei como contraí
varíola. Sim. Variola. Na vinda no ònibus, para o colégio me senti muito mal.
Febre altissima. Corpo frio, Tremores, Suor frio, etc..um horror. Achei que iria
morrer.
Eu morava numa república de estudantes, na rua Ferreira Vianna,
edificio Estarita, 3° andar, bem perto do hospital de Clínicas e era meu
companheiro de quarto, o hoje grande medico, um dos donos do Serdil, da
radiografia, o Dr. Womir Duarte, de Vacaria, irmão, do fundador, Dr. Dakyr
Duarte. Este, também, um grande. Passei tres dias mal. Não retornei à aula no
3° ano clássico, do Col. Anchieta em agosto.
Quando foi no quinto dia de febrão
total, meu corpo apareceu todo manchado e cheio de brotoejas vermelhas, por
tudo, dentro da boca, e as brotoejas doiam, mais no couro cabeludo e na sola
dos pés onde a pele é mais dura e mais grossa. O Volmir de imediato chamou o
professor dele, na Faculdade de Medicina da UFRGS - o catedrático de Doenças
Tropicais, Dr. Louzada e constatou caso títpico de varíola. Chamou a
ambulância, vacinaram toda a rua Ferreira Vianna, que foi fechada e assim eu
fiquei famoso por um dia, pois, todos ficaram sabendo que eu tinha sido a causa
da vacina dos moradores da rua.
E fui levado na companhia do Dr. Dakyr Duarte,
para o Sanatório Partenon, na Av. Bento Gonçalves, ainda existente, e aí fui
internato no Hospital de Isolamento de doenças infecto-contagiosas. Estava
lotado. Fiquei num dos primeiros quartos. Havia um corredor e lá no fundo uma
enfermaria coletiva. Era o dia 3 de agosto de 1957. Fiquei internado até o fim
de outubro, mais ou menos.
Ao sair o Nicanor ( meu irmão mais velho)
me arrumou outro lugar para morar e então fui residir em outra
repúplica, na rua Alberto Torres, no Edificio Harmonia, cuja senhora alugava
quartos e morei no quarto com o sargento da Aeronáutica, o Sr. Paulo, que
trabalhava na Torre de Comando do Aeroporto Salgado Fillho e que muito me
ajudou, pois, ele era bem mais velho do que eu mais experiente era nortista e
tinha experiência e ele me comprava pomada "minâncora" e mandava
passar no rosto e assim as manchas vermelhas foram desaparecendo e, por graça
de Deus e tratamento que recebi no Hospital de Isolamento, não fiquei marcado
com os furos no rosto da varíola.
Hoje
faço parte de associação que participa e ajuda o Sanatório Partenon, onde se
internam ainda os tuberculosos e são muitos e os atacados de Aids e são
muitos. La dentro funciona o Hemocentro do sangue e também o Posto de Saúde do Murialdo.
Tem um movimento fantástico. E lá está o prédio do Hospital de Isolamento onde
eu fiquei internato. Tenho participado de varios acontecimentos em favor do
Sanatório Partenon, como agradecimento ao tratamento que recebi.
Num
dos quartos do corredor, que dava para a enfermaria coletiva nos fundos,
estavam internados dois homens, idosos, um na cama da janela e outro na cama
contra a parede. Não lembro que doença tinham. Pulmão?...Estavam muito doentes.
Quanto eu fiquei mais ou menos bom, eu desobedecia a chefia e caminhava pelo
corredor, ia ate´a janela gradeada do meu quarto e via as mulheres tuberculosas
do Pavilhão Feminino no recreio e brigavam muito e o pessoal da enfermagem
tinha que intervir. Eu falava pela janela gradeada com as tuberculosas. O que
causou o furor da chefia e fui proibido de ir a janela, pois, diziam quem via
cara não via pulmão e eu estava me curando da varíola e podia contrair
tuberculose. Um horror.
Mas,
fiz amizade com os dois homens do dito quarto, e até conversamos, eu na porta e
eles deitados. Lógico, quando não tinha ninguém da enfermagem no Hospital
de Isolamento.
Hoje
o prédio do antigo Hospital de Isolamento, ainda está lá, de pé, bem
construido, à direita de quem entra - e é o chamado
" hospital dia", os pacientes ficam durante o dia,
se tratando, tomando remédio, e à noite vão para casa. Eu reconheci para os
servidores atuais o Hospital de Isolamento e dei detalhes. Não tem nada
escrito. Costumavam queimar tudo. Lógico. Tudo era contagioso e assim não há registros.
Agora o setor histórico, com a esforçada dra. Denise Bastos, está fazendo
a recuperação da história e tudo registra, do hospital Sanatório Partenon
no combate a tuberculose que matava mesmo.
O
que acontece hoje, entre os pacientes, tuberculosos, ( muitos) e os da AIDS (
centenas) e de outras doenças infecto-contagiosas é impressionante e daria
peças de teatro e filmes de boa audiência. Do que é capaz a pessoa humana neste
estado de doença, de dor, de tragédia e tendo quase certeza de que vai morrer.
Muda tudo.
Pois
bem, o homem que ficava deitado na janela, na cama ao lado da janela, passava o
dia contando o que via de sua cama lá fora, e assim distraia o colega de cama,
que estava contra a parede que não via nada. Inclusive eu nas conversas que
tive não notei nada de anormal nas vistas e na visão do homem deitado contra a
janela. Só sabia que eram doentes graves e não podiam levantar da cama.
Um
dia estive na porta e a cama da janela estava vazia. Na noite anterior, como
era comum, muitos morriam, pois, tinha tudo que era doença infecto-contagiosa -
e o homem da cama da janela tinha morrido.
Só
então fique sabendo que o doente que ficava na janela e tinha a
"visão" do mundo exterior, contava histórias para o
colega da cama contra a parede, só, que, vejam o detalhe o homem deitado na
cama da janela, era cego, devido a sua doença e não via nada e o que
contava para o colega de infortúnio na cama da parede era tudo invenção
de sua memória e fantasia para distrair a ele, passar o tempo de
doentes acamados e tambem passar o tempo do colega da cama contra a
parede. Então, ele, generoso, em sua miséria doentia, inventava histórias do
que "via" pela janela, e tudo era invenção de
sua mente prodigiosa, própria de sua doença, no dizer dos enfermeiros que eu
não sei até hoje o que ele tinha.
Depois
eu soube que era um homem de certa cultura e gostava de ler romances e tinha
lido histórias de pacientes nos Pavilhões de Cancerosos e provavelmente tivesse
lido esta história e que repetia para seu colega de quarto e de morte próxima.
Mas
ficou gravado em mim a generosidade e a doação da pessoa humana naquele transe
da doença e a proximidade da morte. Ele, imaginativo, criativo, inventava que
via pela janela e contava histórias para o colega de morte próxima. Este fato,
já era do conhecimento dos enfermeiros e diziam "tudo é
mentira. ele é cego e não vê nada e inventa histórias para o colega de
quarto"...Mas isto eu fiquei sabendo só depois da morte do cego
contador de histórias do Hospital de Isolamento.
Nério
"dei Mondadori" Letti.