ANJOS SEM NOÇÃO
João Eichbaum
Vi no “Facebook” um vídeo que apresenta uma menina
loira, fofinha, cantando a Ave Maria de Schubert. Uma gracinha a menina: uma
cascata de sol nos cabelos e uma voz de soprano de tirar a respiração. Na
postagem se lia uma frase atribuída ao papa Francisco: “até os anjos param para
ouvir essa criança cantar.”
A frase me remeteu para outra postagem, essa,
exibida pela Sociedade dos Ateus: uma criança negra, esquálida, os ossos se
salientando sobre pele mirrada, pedindo a Deus que lhe matasse a fome. Abaixo,
uma fotografia do Neymar, com os braços levantados, agradecendo a Deus, pelo
gol que acabara de fazer. Ao lado, uma fotografia de Jesus Cristo respondendo
para a criança faminta: desculpa, agora não posso te atender, que estou ocupado
com o Neymar...
Então é assim: é por isso que crianças da Síria e de
outros países miseráveis, fugindo para a Europa em busca da vida, acabam
encontrando a morte, trancadas como carga clandestina, despejadas no mar ou
sendo levadas até o fundo dele, presas nos fétidos porões dos navios.
Enquanto isso, enlevados com a voz de lindas
crianças loiras que saúdam a Virgem Maria, os anjos esquecem os miseráveis. E
Jesus Cristo, atendendo não só ao Neymar, mas a todos os boleiros, juízes e
bandeirinhas que erguem as mãos para o céu e fazem o sinal da cruz, não tem
tempo para coisas miúdas. Ele está com os olhos voltados para as multidões: os
estádios futebol, as procissões, a praça São Pedro, as basílicas, os palcos onde desfilam
padres cantores.
No fundo, no fundo, sempre se realiza aquilo que diz
um ditado popular: o diabo caga sempre em cima do monte maior. Só Jesus Cristo e
seus anjos não se dão conta disso.
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