quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

 

A REESTRUTURAÇÃO DO RACISMO

O vocábulo “raça” provém etimologicamente de “radix, cis”, termo usado por Plínio e Cícero, no sentido de “tronco, origem, descendência, sangue”. Com a mesma significação, essa palavra se incorporou ao léxico italiano com o nome de “razza”. Mas, assim como em português, a designação de natureza étnica em latim é representada por outros vocábulos: stirps, pis; genus, eris; progenies, iei; gens, tis; semen, inis; origo, inis; suboles, is; sanguis, inis. De modo que, quem domina o latim, jamais passará atestado de ignorância, afirmando que a raça humana é uma só, que cientificamente não se pode expressar a origem étnica através do vocábulo “raça”.

Em realidade, o correto, do ponto de vista científico, é afirmar que, como animais, os homens pertencem à espécie humana. O vocábulo “espécie” tem uma conotação mais genérica do que, propriamente, “raça”. Soa mal dizer que há várias espécies humanas. Há, sim, várias raças.

Assim como têm várias raças as espécies bovina, canina, suína, etc., a humana também as tem. São as características genéticas, que lhes definem a estirpe, separando os animais em raças. E a espécie humana não escapa dessa regra.

A natureza, movida a química, evidentemente produz reações químicas. Assim como não há uma flor igual à outra, não há um homem igual ao outro. De uma roseira não floresce, naturalmente, um cravo. Um lírio não pode gerar uma rosa. Existem mutações genéticas em decorrência da evolução. E hoje também as existem, produzidas pela tecnologia. Mas a regra fundamental das leis da natureza está presa às características genéticas.

Então, existem, sim, raças humanas. Daí, o racismo, expressão criada na França (racisme). Na língua portuguesa não existia essa palavra, conforme se constata no “Novo Diccionario da Lingua Portugueza”, editado em 1836.

Na verdade, outra coisa não é o chamado “racismo”, hoje, senão puro preconceito. Mas, no início, no Brasil, não era assim. Era um racismo organizado, oficializado, entranhado nas estruturas social e estatal: racismo estruturado, e não “estrutural”, como dizem os analfabetos funcionais.

Esse racismo, mesmo depois da abolição da escravatura permaneceu, porque não era fácil arrancar, de uma hora para outra, as raízes de uma ideia fincada no âmbito nacional. Mas, paulatinamente, foi sofrendo mudanças com o surgimento das novas gerações e se transformando em preconceito, já que, teoricamente, havia esmaecido a ideia de inferioridade étnica.

Os descendentes de africanos foram se inserindo na sociedade, sem o incômodo da discriminação, impondo-se por seus próprios valores. Nunca na história do país, por exemplo, houve um branco com veneração igual à de Pelé. E a miscigenação, além de quebrar a desigualdade, contribuiu para o aperfeiçoamento étnico.

Mas o Estado resolveu interferir, montando oficialmente diferenças e reavivando as linhas divisórias de antigamente. Estabeleceu prerrogativas que não só pressupõem inferioridade étnica, como ainda atiçam a revolta dos injustiçados pelo tratamento desigual. E aos desvarios do Estado juntou-se o desespero da grande mídia em estado pré-falimentar, pois não é a normalidade, mas o conflito que vende notícia. Esse contubérnio agora tem tudo para reestruturar o racismo.

 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

 

O ESTADO NU

Parecia um filme de farwest, transportado dos magníficos cenários de Holywood para os tempos modernos, com os cavalos substituídos por automóveis de luxo, e as carabinas, por fuzis de alta potência, metralhadoras e explosivos. Mas não faltaram, como naqueles antigos filmes de bandidos e mocinhos do oeste americano, os tiros para o alto, para mostrar valentia e impor medo, desafiando o xerife.

Então começaram as cenas de terror. Vidraças estraçalhadas, explosivos derrubando paredes, veículos pegando fogo, e um tiroteio nada festivo, perturbando sonos e insônias. Era o crime, de madrugada, na cidade de Criciúma, mostrando quem  tem mais poder.

Com seu esquema exemplarmente organizado, os assaltantes obstaram a reação da polícia, ou seja, deixaram o Estado nu, anulando a segurança da população, uma das funções em nome das quais ele assaca o contribuinte, ameaçando-o com cadeia, multa, despojamento de bens, etc.

Humildes trabalhadores que, para dar segurança à população, se entregavam à tarefa da sinalização horizontal de trânsito, foram tomados como reféns e usados como escudos. Então, com pleno domínio da situação, os bandidos saíram em comboio, festejando sua demonstração de poder, estratégia e organização, com música em tonitruantes decibéis. E, para escárnio geral, fazendo chover dinheiro pelas ruas da cidade.

Claro que o povo não iria deixar todo aquele dinheiro ali, dando sopa. Aplicou logo o antigo axioma, por ele mesmo criado: “o que é achado, não é roubado”. Só que a polícia não afinou por essa jurisprudência popular. Atônita, tomada pela surpresa do inusitado, sem condições de se impor sobre a estratégia da organização criminosa, saiu prendendo as pessoas indefesas que catavam dinheiro.

Vivemos num país ocupado por um povo majoritariamente pobre, por miseráveis que catam lixo, passam fome, vivem de migalhas; por milhões de desempregados, gente de baixo nível intelectual. O que esperar desse estrato social, dessa gente que nunca tinha visto tanto dinheiro na sua frente? Exigir deles moral europeia, que não se encontra nos políticos brasileiros?

 O Estado, no Brasil, outra coisa não representa senão um ajuntamento de engravatados, que enriquecem à custa do povo espoliado, e só querem aparecer. O assalto cinematográfico aconteceu, enquanto os engravatados estavam mais preocupados com a destituição do governador. Naquela hora, a polícia representava o braço fraco do Estado.

O crime mostrou para todo o país o que é organização. Ensinou às instituições o que é a estratégia inteligente, como se assume o domínio de qualquer situação. Mas o Estado não assimilou a lição. Não aprendeu que o núcleo da estratégia está no segredo. Prendeu alguns bandidos e divulgou tudo: onde, quando e quem, para mostrar serviço.

Da organização dos assaltos em Criciúma e Cametá, ninguém ficou sabendo, mas cada passo da investigação é propalado como feito heróico. O PCC, sem agradecer, toma providências para apagar não só as provas como quem falar demais. 

E o Estado-Juiz aguarda a “audiência de custódia”, criada pelo Estado-Legislador, para dar liberdade, em nome dos “direitos humanos”, ao bandido que apresentar lesões corporais. Para tal finalidade, até unha encravada serve.

 

 

 

 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

 

O POVO E SEUS BEZERROS

Se existe um assunto fértil, inesgotável, bom de escrever, é sobre o povo. O povo sempre foi povão, desde priscas eras, quando o macaco humano, ao invés de sair da caverna só para roubar a mulher do próximo, começou a se enturmar, jogando conversa fora, para passar o tempo.

E justamente por se juntarem em torno de conversas fúteis, por não terem nada que fazer, por não terem contas a pagar, por não precisarem pagar imposto de renda, nem dar satisfações ao fisco, os homens foram criando essa figura informe, maleável, volúvel, chamada povo, que se deslumbra com o insignificante, e cai na conversa de quem é bom de gogó ou de estampa sedutora, com a maior facilidade.

A primeira mostra do que já era o povo, nos primórdios da chamada civilização, está no Livro do Êxodo, capítulo 32, versículos 1 a 5, como abaixo vem transcrito.

“Vendo o povo que Moisés não desceu logo da montanha, foi ter com Aarão e disse-lhe: ‘Olha, faz-nos ídolos, para que tenhamos deuses que nos guiem, pois não sabemos o que foi feito desse Moisés que nos tirou do Egito’. ‘Deem-me os vossos brincos de ouro’, respondeu-lhes Aarão. Assim fizeram todos; as mulheres e os seus filhos e filhas.  Aarão fundiu o ouro e moldou-o, dando-lhe a forma de um bezerro. E o povo exclamou: ‘Ó Israel, aqui tens os teus deuses que te fizeram sair do Egito’! Quando Aarão constatou o quanto o povo tinha ficado feliz com aquilo, construiu um altar defronte do bezerro e proclamou: ‘Amanhã haverá uma celebração dedicada ao Senhor’! Assim, logo de manhã cedo, levantaram-se e começaram a oferecer holocaustos e ofertas de paz, ao bezerro, o ídolo. Por fim, o povo descansou a comer e a beber, e levantou-se para se divertir”.

Sim, o tal de Aarão era bom de gogó. É de gente assim que o povo gosta e por isso os toma como “guias”.

De lá a esta parte, o povão sempre cultuou “bezerros de ouro”. O mundo mudou, evoluiu a civilização, veio a tecnologia trazendo o conforto, mudando comportamentos. Moldou-se o povão a tudo. Mas, atrelado aos limites de sua capacidade de raciocinar, nunca abriu mão de seus “bezerros de ouro”.

Hoje o macaco humano sai de casa para se enturmar no café, no bar, jogando conversa fora, enquanto lança olhares lascivos, de esguelha ou acintosos, para o traseiro das mulheres do próximo. Dos papos sobre política e futebol, com mulher nos entrementes, nascem ídolos que se transformam em “bezerros de ouro”. Depois, é só chegar em casa e ligar a televisão para confirmar a veneração de mais uma figura mitológica.

Na semana passada, o estupor da mídia internacional e os rasgos de paixão do povo pela morte do Maradona eram como se tivesse morrido quem não devesse morrer.  Assim é. A mídia, que é o Aarão de hoje, é levada pelo povo a criar bezerros de ouro, e depois custa a acreditar que eles não eram deuses.

 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

 

O ANIMAL VOLÚVEL

O cronista fez a seguinte definição de povo: um grupo de animais vertebrados, mamíferos, falantes, bípedes, não alados, mas volúveis, movidos a crenças, paixões, necessidades e interesses. Não deu outra. Três dias depois, um assassinato, praticado por tortura na via pública, servia como exemplo concreto dessa definição.

A doentia curiosidade por cenas cruentas, que é uma forma de paixão, já que a paixão não passa de emoções elevadas ao cubo, parece uma atração irresistível do povo: onde tem sangue, lá está o povão para bisbilhotar. Coisa muito comum é engarrafamento no trânsito por causa dessa vampírica bisbilhotice. Um carro batido, capotado ou atravessado é o bastante para que o povo já diminua a marcha, a fim de ver o tamanho da desgraça. Hoje, com a tecnologia, tudo fica mais fácil. Com o celular na mão, o povo não só satisfaz seu gosto por desgraça, como ainda tem ocasião de botar seu ego na frente, postando a desgraça no Facebook. Ah, e ainda conta com a chance de vender a notícia.

No caso da monstruosidade no Carrefour em Porto Alegre, quem não é levado por sentimento doentio, mas por racionalidade, ao tomar conhecimento das imagens da violência se pergunta: quem é que filmou isso?

Lá estava o povo: não só assistindo, servindo como plateia da desgraça alheia, como filmando, para atender interesses seus. Ao invés de usar o telefone para chamar a polícia, para pedir socorro, o povo estava lá naquele palco público, satisfazendo suas emoções pela cena cruenta. Da caverna da covardia, ninguém saiu para acabar com o cruel espetáculo. Se eram dois os agressores, não haveria entre a plateia três machos dispostos a assumir o papel de heróis?

Não. Macho? O que é isso? Isso é machismo. Hoje todo mundo é igual. Desapareceu, para o povo, o substantivo masculino. Então, vamos ficar de fora, só filmando.

E as imagens captadas correram pelo país inteiro, atiçando paixões, revolvendo ódios, excitando aqueles que distinguem as criaturas pela cor, mas contraditoriamente combatem o racismo, esse substantivo inventado para expressar discriminação contra determinadas etnias. E daí, surgiu outra violência, a do quebra-quebra, mas também carnaval, como sinal de “protesto”, em plena pandemia, que ninguém é de ferro...

E a grande imprensa já correu atrás de opiniões. Gilmar Mendes, Luiz Fux e Alexandre de Moraes, deixaram de ser juízes, para se misturar à plateia. Encheram a boca de adjetivos para condenar a ação, fora dos autos, emitindo opiniões, quando seu dever seria se reservarem para eventual julgamento.

Enfim, esse é o povo: um ajuntamento de animais “não alados”, mas volúveis. Ontem, esse ajuntamento pedia a libertação de Barrabás e a crucificação de Jesus Cristo, hoje adora Jesus Cristo. O povo não passa disso: um caniço agitado pelo vento soprado pelos Moisés da vida, que lhe prometem pão e mel. Enquanto isso, para se distrair, vai construindo seus bezerros de ouro e seus espetáculos circenses com a desgraça alheia. Lá vai, levantando cartazes de “queremos Justiça”, porque ficaria feio escrever “queremos vingança”.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

 

O ANIMAL POLÍTICO

Povo é um substantivo coletivo que serve para designar aquela manada de macacos que, tendo perdido pelo e rabo, passaram a se achar animais cobertos de dignidade.

Estranharam? Manada? Como assim? Sim, senhores, manada. Sabem por que? Por causa da etimologia, em primeiro lugar. Manada provém do substantivo “manus”, da quarta declinação latina, que significa “mão”. Quer dizer, os bichos que têm mão não passam de uma manada, quando em grupo. Em segundo lugar porque, mesmo tendo se tornado humanos, não deixam de ser macacos, em sua composição orgânica, enquanto animais. Atualmente, macacos manipulando chips, mandando ver no Facebook.

Então, a partir daí, se completa a definição de povo: um grupo de animais vertebrados, mamíferos, falantes, bípedes, não alados, mas volúveis, movidos a crenças, paixões, necessidades e interesses.

Como grupo constituído por uma espécie que gosta de sexo – e sexo resulta em multiplicação, quando feito direitinho, segundo as leis da natureza – se multiplicou. E se multiplicou de tal maneira, que foi preciso que alguém dissesse: “calma, pessoal, pera aí, vamos organizar a suruba”. A bíblia traz um exemplo disso, quando inscreve em sua literatura mitológica a figura do Moisés. Como todo mundo sabe, Moisés, um cara que não era cristão, foi escolhido, segundo ele, por Javeh, o deus judaico, para reconduzir os judeus à pátria amada, idolatrada.

Bem, e aí houve aquele ajuntamento, como em dia de quermesse. E o povo judeu, que servira de escravo no Egito, foi conduzido por Moisés pelo caminho que levava à terra prometida, onde escorria leite e mel. Mas dá para imaginar aquela multidão, movida a crenças, paixões, necessidades e interesses, reunida. Começou a haver bagunça, e então o Moisés teve que organizar a bagunça. Surgiu de lá de trás de um foguinho, com as tábuas da lei, conhecidas como os dez mandamentos. O senso de observação o levara a detectar todas as tendências que aquelas crenças, paixões, necessidades interesses geravam nos comportamentos individuais. Daí a necessidade de leis, de regras.

Essa foi a primeira manifestação de liderança humana de que se tem notícia em determinados círculos da humanidade. De resto, a necessidade de liderança, sendo imperiosa no gênero animal, que é gregário, já se manifestava em outros animais. Hoje essa ascendência de um sobre muitos é bastante conhecida, principalmente nas abelhas e nas formigas, num modo que causa inveja aos seres humanos.

Pois é, gente. Todo esse blablablá tem sua razão de ser, por causa dos acontecimentos e das notícias que tomaram conta dos meios de comunicação no domingo último: as eleições. Domingo foi o dia em que crenças, paixões, interesses e necessidades tiveram outros motivos para levar o povo a escolher os seus moisés da vida, aqueles que farão truques com maná e o mar, e lhe meterão leis goela abaixo.

Houve pesquisas falsas, comentários de analistas políticos fajutos. Esqueceram do Bolsonaro por um dia. A sinistra pandemia foi esquecida, porque os que vivem à custa do povo decidiram que só ajuntamento de eleição faz bem para a saúde.

 

 

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

 

O CIRCO FORENSE

O povo viu o espetáculo de graça, bem acomodado nas poltronas de casa, sem castigar com a dureza de tábuas de arquibancada as carnes que circundam o fiofó. Só faltou palhaço vendendo pipoca e maçã do amor, como é do feitio nos espetáculos de circo mambembe.

A peça apresentada no espetáculo era uma dessas bestialidades bem ao gosto da espécie símia que, perdendo o pelo e o rabo, passou a se chamar homem, mas não deixou de ser bicho concupiscente: o uso dos instrumentos de reprodução, com fins outros que não o de contribuir especificamente para a densidade demográfica.

Isso: a peça levada no circo forense tratava de assuntos de alcova. Sob o alegado motivo de ter sua rachadinha contrariada pelas abusadas partes de um senhor de negócios, uma respeitável senhorita botou causa na justiça. Constava da petição: que era moça de bons costumes e donzela ainda lacrada pela natureza; que não lhe cabia nos modos deixar à vista de estranhos, nos escondidos de quartos, suas curvas e reentrâncias; que mais se considerava menina de namoro de portão, do que rapariga de se meter entre lençóis, desembrulhada dos tecidos debaixo, para fins libidinosos... E por aí foi, até desembocar no ponto final de que fora abusada sem consciência, por ingestão forçada de álcool e drogas, no redemoinho social de uma festa.

Questão de tal ordem requer prudência e recato. Por esse motivo, manda a lei que a causa seja tratada “em segredo de justiça”, para não disseminar escândalos entre as boas famílias. Só que não. Em tempos de pandemia cada litigante fica em casa e só mostra a cara no computador. Indagada pelo meritíssimo se estava sozinha, a moça respondeu que estava no escritório do “advogado” de sua família. Da pergunta se lhe tinha passado procuração brotou resposta negativa.

O juiz fez advertências sobre aquela indevida presença. A ofendida rebateu, batendo boca com o juiz. Seguiu-se o espetáculo forense, que despencou para cenas de choro e baixaria. Do vocabulário do advogado de defesa desabrochou o que de pior existe para magoar madames e donzelas. E, no final do discurso encharcado de ofensas, estendeu seu constituinte num berço de inocência. Tudo isso fazendo coro à ponderação do Promotor de Justiça de que o acusado tirara proveito dos desabotoados da moça sem a intenção de praticar estupro.

Uma empresa que opera no atacado de escândalos e fofocas selecionou cenas, mostrando a moça como vítima do Judiciário. E, para apimentar a descrença na Justiça, divulgou a jurisprudência do “estupro culposo”, como se fosse coisa saída da boca do Promotor.

A indignação da tropa de choque feminina levou o povo a acreditar no “estupro culposo” e ir às ruas, esbravejando contra a Justiça. A revolta ecoou no parlamento, na OAB, no CNJ, no CNMP, na mídia e, naturalmente, na boca do Gilmar Mendes. Mas, sobre a violação do segredo de justiça ninguém tugiu, nem mugiu. Não sobrou indignação para perguntar o que fazia o “advogado” da família da moça nos bastidores...

 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

 

RELIGIÕES, ONTEM E HOJE

A história das grandes religiões se confunde, o mais das vezes, com a mitologia, porque essa é, na realidade, sua fonte. Lógico, sendo a mitologia fruto da imaginação humana, o homem a cria a partir das próprias experiências ou aspirações. Então ele projeta suas virtudes, vícios e defeitos naqueles deuses, heróis e vilões, que são os personagens da literatura mitológica.

A versão religiosa da criação do mundo, que serviu de base para a religião judaico-cristã, por exemplo, tem características genuinamente mitológicas, mostrando virtudes, defeitos e vícios do homem. O coitado do Adão, que não pediu para vir ao mundo, acabou, na sua ingenuidade, sendo enrolado pela mulher, que não precisara conquistar, porque lhe foi presenteada enquanto dormia.

Já a mulher, que não tinha com quem jogar conversa fora, fez amizade com a serpente. E aí, naquele paraíso onde nada de interessante acontecia para quebrar a rotina, conversa vai, conversa vem, até que a serpente, sutilmente, acabou inculcando na mulher a ambição pelo empoderamento: “se vocês comerem daquela fruta vão ficar iguais a Javé...” E a mulher, por sua vez, convenceu o homem a desobedecer às ordens lá de cima.

Então, tudo começou assim. O Adão não tinha pecado, era inocente como uma criança e foi o primeiro da espécie a sofrer assédio. Foi o primeiro a sentir a força sedutora da mulher. Usando da mentira, a serpente despertou na mulher a ambição pelo poder.

O final desse preâmbulo do homem e de suas religiões, todo mundo sabe: Adão e Eva foram expulsos do paraíso, por terem descumprido o decreto divino. Ela, por ser ambiciosa e sedutora. Ele, decerto, temendo greve de sexo.

Mas a vida fora do paraíso mostrou outros vícios humanos. As preferências de Javé pelos sacrifícios oferecidos por Abel, despertaram a inveja de Caim, que acabou matando o irmão.

As religiões reúnem animais humanos com todos esses vícios e mais alguns, inconfessáveis. Dizendo-se representantes de alguma divindade, elas criam leis e mandamentos. Nem todos os fiéis levam tais prescrições ao pé da letra. Mas os que as assimilam doentiamente, transformam em vício aquilo que deveria ser virtude. Não admitem verdades contrárias. Deixam-se governar por uma noção de certo ou errado criada por eles mesmos. Vivem compelidos por suas crenças.

O amálgama dos vícios inaugurados no Gênesis hoje espalha o terror na Europa. Em plena era do domínio da ciência, por conta de crenças se destroem vidas, se elimina quem usa o direito de expressão. Ultimamente França e  Áustria foram usadas como palco dessas barbáries.

O que ontem a Igreja Católica fazia para impor seu domínio religioso, através das cruzadas e da Inquisição, hoje o fazem os crentes fundamentalistas do maometismo. Olho por olho, dente por dente, é a lei que os impele à violência contra os adeptos daquela religião do “amor ao próximo”, que outrora mandava para a fogueira quem dela discordasse. E no curso de toda a história, o diabo, que até hoje não sabe quem lhe meteu guampas, sempre sorrindo de satisfação.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

 LOCUÇÃO PREPOSITIVA

Em editorial intitulado “A Lei não é o Problema”, o jornal Estadão enaltece a decisão de Marco Aurélio, que mandou soltar o traficante André do Zap.  Diz o editorial que “as disposições legais vigentes não são apenas corretas, como essenciais...” E cita o parágrafo único do art. 316 do CPP: “decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.

São dois os problemas: a lei e os que não sabem ler. O aprendizado do idioma que não foi regado com boas leituras dá nisso. As pessoas juntam as letras e formam palavras. Mas, não entendem o texto, porque o léxico pobre as impede de gerir aquele processo de inteligência, que envolve conhecimentos gramaticais.

Que o povo fique só nas palavras, sem atinar com o verdadeiro sentido de sua expressão, vá lá. Mas que jornalistas não saibam joeirar gramaticalmente um texto, é imperdoável. Mesmo que tenham sido arrastados ingenuamente pela ilusão de que “notório saber jurídico” é a trena de medir toga de ministro do STF em senhores de augusta sabedoria.

Todo mundo sabe que não é bem assim. Todo o mundo sabe que, na selva da politicagem, a Constituição Federal é interpretada ao sabor de interesses pessoais ou de grupos, e que, para ser ministro do STF, requisito indispensável é só ter padrinhos no poder.

A locução prepositiva é uma expressão com função conectiva, destinada a ligar termos ou orações, fazendo as vezes de preposição. “Sob pena de” é uma locução prepositiva que significa “estar sujeito” a possíveis consequências.

Por exemplo, na entrada de uma caverna pode haver um cartaz assim: “não entre, sob pena de ser devorado por um leão”. Isso não quer dizer que haja um leão lá dentro. Tanto pode ser a morada de um leão, como um lugar habitualmente visitado por leões. Não quer dizer que basta entrar na caverna, para ser devorado por um leão. O leão pode estar dormindo, pode não ter dentes, pode estar saciado... Então, quem entrar lá “está sujeito”: estará se expondo a virar comida. Trata-se de advertência, e não de um juízo perfeito e acabado, tipo: entrou, tá ralado.

Se a redação do parágrafo único do art. 316 do CPP foi movida pela intenção que, no dispositivo, Marco Aurélio e os editorialistas leram, o legislador é ruim no vernáculo. Além de desconhecer o sentido da locução “sob pena de”, deixou a oração “tornar a prisão ilegal” à mercê de sujeito ambíguo, omitindo o reflexivo “se”, que definiria aquela função gramatical. E, sem técnica legislativa, emprestou natureza de perempção à inatividade judicial, criou outra prisão provisória, e enxertou um “de ofício” que exclui requerimentos.

Então é preciso dizer aos editorialistas do jornal Estadão que o problema está na lei, sim, na lei e nas pessoas que não sabem ler. Será que aqueles jornalistas e algum ministro do STF sabem o que é uma “locução prepositiva”?

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

 

INCONGRUÊNCIAS E FIASCOS

De modo geral, o ser humano se considera bem mais importante do que ele realmente é. Filósofos e religiosos, fechando os olhos para a natureza animal dessa criatura, acabam lhe inculcando a ideia de que é um ente revestido de dignidade, com direito à vida eterna.

Distorcendo a realidade de que somos apenas uma espécie, a dos vertebrados bípedes falantes, pertencente ao gênero animal, se aproveitaram os mais ambiciosos, os menos escrupulosos, para estabelecer uma hierarquia. Essa hierarquia compreende uma casta armada que detém o poder, estabelecendo as regras para o estrato social inferior, desarmado. E isso tanto   no plano laico como no plano religioso.

Os que mandam, o fazem segundo suas conveniências; os que obedecem ficam nivelados pela régua da lei ou dos costumes impostos, como esse de amar a Deus, quando o que o homem mais ama, acima de todas as coisas, é a vida, sem nunca dispensar uma saidinha com a mulher do próximo.

No Brasil, esse quadro das diferenças entre servos e poderosos, tem se acentuado de forma escandalosa  ultimamente, com a vantagem de mostrar, para os servos, que os poderosos não são melhores do que ninguém, nivelados que estão, pela natureza animal, a todo mundo.

Acontece que as normas, as regras, o arcabouço do poder, enfim, têm suas falhas, seus furos, seus remendos, denunciando a fraqueza dos degraus da hierarquia.

No caso Marco Aurélio-André do Rap todas essas fraquezas vieram à tona. Alegando ter aplicado apenas a letra da lei, o ministro Marco Aurélio mandou soltar imediatamente a André do Rap, poderoso e endinheirado traficante.

A ordem de Marco Aurélio, mais do que estranheza, desatou clamor público, reação da qual os poderosos hoje não podem fugir, diante da força das redes sociais. O impacto então bateu em Luiz Fux, presidente do STF. Num esforço para salvar a honra da instituição, cassou os efeitos da medida decretada pelo colega, entregando ao pleno do tribunal o julgamento da questão.

Então vieram a furo vaidades, egoísmo, pobreza intelectual, ingredientes impróprios à composição do conceito de dignidade. O primeiro a exibir a chaga de sua vaidade atingida foi Marco Aurélio, recusando a Luiz Fux o status de instância superior à sua. Ao invés de se limitar a julgar o conflito, tornou-se um personagem dele, como vítima da decisão de Fux.

No plenário, foi discutida preliminarmente a legalidade do ato que suspendera a soltura do traficante. Na sua vez, Gilmar Mendes, com pose de catedrático, gastou duas horas para dizer que a medida de Fux não tinha amparo legal. Mas, acabou se expondo ao ridículo da incongruência:  aprovou o ato que havia considerado ilegal. Foi como se o advogado do diabo lhe tivesse assoprado que as evidências de seu discurso estavam manchadas de dúvidas.

Com exacerbada irresignação, só semelhante à de quem perde todas as fichas no jogo, Marco Aurélio protagonizou a vulgaridade do espetáculo. Como torcedor xingando o juiz, borrifava invectivas contra Fux. E pela TV Justiça, funcionando como esgoto a céu aberto, escorria a dignidade...

 

 

 

 

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

 

SEM A LÍNGUA, NÃO HÁ CIÊNCIA

Além de arruinar a economia, fazendo sumir o dinheirinho da poupança dos brasileiros, Fernando Collor nos deixou como herança seu primo, Marco Aurélio Farias de Mello, transformado em ministro do Supremo Tribunal Federal. E sabem donde ele tirou o primo, para promover essa façanha? Do TST, onde o dito foi parar, depois de ter apeado da garupa do quinto constitucional, reservado ao Ministério Público, no TRT1. Só que o “Ministério Público”, onde estivera lotado Marco Aurélio, não passava de uma sinecura criada por Getúlio Vargas, para aninhar afilhados políticos, então sem concurso, ganhando muito e trabalhando pouco: a Procuradoria do Trabalho.

Esse é currículo do ministro que, lendo o parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei nº 13.964/19, sem atinar com o sentido do texto, concedeu imediata liberdade a um poderoso traficante de drogas. Olhem o que diz o tal parágrafo:  “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.

Para começar, uma informação: essa lei, a 13.964, gerada na barriga de um pacote chamado “anticrime”, acabou dando à luz, nas trevas do Poder Legislativo, a um texto deformado, aleijado, parido entre os excrementos das más intenções, exatamente a serviço do crime, como as novidades do “juiz das garantias”, e esse parágrafo único, introduzido nela à undécima hora, para servir eventualmente a encrencados na Lava Jato e nas “rachadinhas”.

Sérgio Moro, então Ministro da Justiça, alertara Bolsonaro, instando-o a opor veto a esse maldito parágrafo, que repugna a quem conhece o estado permanentemente falimentar da Justiça brasileira. Mas, Bolsonaro deu de ombros para a admoestação, em nome e por conta de interesses políticos, dizendo que “não podia dizer sempre não ao Poder Legislativo.” O argumento por ele usado, se é que merece o nome de argumento, não passa de desculpa esfarrapadíssima, capenga, produzindo a impressão de que o interesse da sociedade é um assunto menor do Estado. Talvez tenha nascido aí a ideia de “terminar com a Lava Jato”.

Determinando a soltura de poderoso traficante com base nesse ominoso parágrafo, Marco Aurélio se deixou embriagar pelo poder que desconhece a prudência. Aplicou a lei, sem os pudores da hermenêutica. Com isso desatou um clamor social que mexeu com as estruturas do STF. Seus colegas gastaram duas tardes com as lengalengas sonolentas de sempre, quando bastaria uma simples menção ao vernáculo.

A questão é de uma simplicidade infantil. A locução prepositiva “sob pena de” esboça apenas a “possibilidade” da geração de consequências: no caso, a de “tornar a prisão ilegal”. A omissão do juiz poderá, ou não, “tornar a prisão ilegal”. Quem domina o vernáculo jamais extrairá daquele texto a conclusão de que tal omissão acarreta, “ipso facto”, a ilegalidade da prisão. Mas, para ser ministro do STF se exige “notório saber jurídico” de quem não sabe utilizar o único instrumento do Direito: a linguagem.

 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

 

O DOUTOR DE LA CORUÑA

 

Sabe aquele cara que, chegando com um sorríso amável, tão amável que parece antigo, de muitos tempos vividos, passados juntos, tipo gente de casa, ganha toda a confiança de você? Ele entra na sua vida como um raio de luz que jamais se apagará, põe ritmo no seu fôlego, acalma seu coração, põe você noutro mundo.

 

E quando ele começa a falar, você é arrastado, em poucos segundos, pela sensação de que o sujeito é aquela criatura enviada por Deus, para botar sua vida em ordem, para esquecer sua dor nas costas, para zerar o saldo negativo que você tem no banco, para encaixar tudo e não deixar nada fora do lugar. Então ele diz a que vem, depois de ter captado você nas redes da sedução, que ele maneja com perícia exemplar.

 

O galante, o conversador, o mágico da palavra e dono de um sorriso inimitável, não é nada mais, nada menos, do que um vendedor de plano funerário. E que foi contemplado por Deus com o dom da sedução. Então, ele, que veio arrastado pela tentativa de lhe vender um plano funerário, acaba, com calma e minúcias,  lhe vendendo três.

 

Sim, existe esse tipo. Existem encantadores de burro, como os há de serpentes. Existem aqueles que hipnotizam com um olhar, com um sorriso e depois deitam um verbo que desmoraliza qualquer contestação. Tanto existem que o Código Penal Brasileiro lhes dedica um capítulo inteiro.

 

Mas, nem todos os dotados pelo Espírito Santo com arte de cativar, enveredam pelo caminho do crime. Vender planos funerários, por exemplo, não é crime. Há os que aproveitam esse dom divino, para se dar bem na vida, sem fazer esforço.

 

Vejam o que aconteceu para Bolsonaro. Levado pelo piauiense Ciro Nogueira, líder do “Centrão” no Senado e enredado na Lava Jato, o seu conterrâneo, Kassio Marques, foi ao Palácio do Planalto pedir uma mãozinha do presidente para vestir toga de ministro do STJ. Carregava debaixo do braço o currículo, atestando pós-graduação em La Coruña. E chegou com aquele sorriso amável e o jeito de falar cativante. Em poucos minutos recebeu uma resposta que não esperava: seria indicado para o STF. Sucesso que nenhum vendedor de plano funerário sonhou.

O resto da história é conhecido. Os encantos do piauiense foram se alastrando. Chegaram ao Toffoli, e até ao sisudo Gilmar Mendes. Rolou rock, pizza, futebol do brasileirão na casa do Toffoli. E trocaram afetuosos abraços heterossexuais, pescoço com pescoço, a mão de um quase encostando na bunda do outro, Bolsonaro e Toffoli. Assim, terminaram em abraços, carícias e pizza as bravatas de um cabo e um soldado fechando o Supremo...

 

No beija-mão aos senadores, ritual enxertado nos pré-requisitos para se tornar ministro do STF, Kassio esmerilhou frases coleantes, respondeu com jeito de muçum ensaboado a temas como “lava jato” e prisão em segunda instância, distribuindo seus encantos. Kátia Abreu não escapou ao feitiço. Ignorando a inexistência do pós-graduação em La Coruña, a senadora se rendeu, suspirosa: “ele é carismático...”

 

 

 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

 

O ADEUS DO PODER

Saulo Ramos não foi ministro do Supremo Tribunal Federal.  E a razão é muito simples: um ser humano com sua estatura intelectual não tem padrinhos. Porque o padrinho precisa ter mais qualidades do que o afilhado, quando se trata de arrumar um cargo público tão charmoso, como esse de ministro do Supremo Tribunal Federal.

Saulo Ramos tinha, isso sim, cacife, era respeitado. Sabia escrever, como poucos. Sabia se expressar com elegância, sem ornamentos fúteis na escrita, sem o estilo rebuscado, temperado com vocábulos catados no dicionário. Sabia se comunicar sem rodeios, com objetividade.

Então, ele jamais necessitaria de padrinhos para concorrer a uma vaga no Supremo, porque não havia padrinhos com cacife suficiente para superar o dele. Não havia padrinhos mais sábios, mais respeitáveis do que ele no governo José Sarney. Mas, em compensação, ele podia ser padrinho, e na certa era disputado como tal. E foi como padrinho que ele ajeitou a carreira do então promotor de Justiça Celso de Mello, transformando-o em ministro do STF.

Celso de Mello virou notícia, quando Sarney se candidatou a Senador pelo Amapá. Impugnada a candidatura do astuto político, o caso foi parar no Supremo. O voto de Celso de Mello era de favas contadas a favor de Sarney, que o nomeara ministro do Supremo. Mas, não. Celso de Mello votou contra Sarney.

No dia seguinte, cobrada por Saulo Ramos, via telefônica, a razão pela qual Mello tinha negado a causa do ex-presidente, o então novel ministro do STF explicou. Os jornais da véspera davam como certo seu voto a favor do Sarney. Por isso, ele esperou a votação dos demais ministros e, vendo que seu voto não alteraria o resultado, votou contra seu benfeitor.

Saulo Ramos, então lhe perguntou: se do seu voto dependesse o resultado, o que faria ele. Mello respondeu que votaria em favor de Sarney. Aí, Saulo foi curto e grosso, comparando o afilhado Celso de Mello àquele produto trabalhado pelos intestinos, que obriga o ser humano à mais abjeta solidão.

Marcas ignominiosas se tornam indeléveis na vida pública. Mello, porém, nunca mostrou cara de choro, porque foi anestesiado pelo puxassaquismo, e teve atrelado a seu nome o aposto “respeitável decano”. Mas, bem mais curto do que seus prolixos votos, o tempo o aproximou do fim dessa glória.

O inquérito no qual Celso de Mello amarrou o presidente Jair Bolsonaro, lhe rendeu alguma dor de cabeça, em razão de suas decisões pouco ortodoxas. A última delas, determinando o interrogatório do presidente perante a polícia, foi a gota d’água que faltava para tirar do decano a última palavra. Houve recurso e o ministro Marco Aurélio entregou ao Pleno do Tribunal a controvérsia.

Então, antes que sua decisão fosse pendurada no rol dos erros, antes que, no fim da carreira, fosse ele carimbado com a mesmo rótulo que, no início, lhe pespegara Saulo Ramos, Celso de Mello pediu as contas. Para sua sorte, tem bons motivos para explicar, a quem lhe cobrar a antecipada atitude: recomendação médica.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

 

DECISÃO NAS COLCHAS

Augusto Aras foi ao STF, tão logo Bolsonaro e Sérgio Moro quebraram os pratos. Pediu a abertura de inquérito, com base em entrevista concedida por Sérgio Moro. Para isso gastou várias laudas, nas quais não pode esconder a intenção de extrair “infrações penais” de palavras que não exprimem condutas delituosas. Pediu inquérito para destrinchar suposições, intenções, maus pensamentos. Até crime que não existe no Código Penal, o senhor Aras botou na lista, para investigar Bolsonaro e Moro: “obstrução de justiça”.

O pedido de abertura de inquérito caiu no colo togado do ministro Celso de Mello, que saiu deferindo tudo o que lhe foi requerido. Entregou a tarefa de investigação à polícia, esquecido de que há um respeito à hierarquia, que a Constituição Federal preserva.

O artigo 102 da Constituição confere competência ao Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar, originariamente, “nas infrações penais comuns, o Presidente da República, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o Procurador Geral da República”. A importância desses cargos, na hierarquia da República, é responsável por tal prerrogativa.

Antes de mais nada, deveria Celso de Mello dar uma olhadinha na Constituição, para extrair dela o recado do respeito pela hierarquia. A partir daí, ele teria encontrado, no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, o suporte legal que patrocina esse respeito. Estabelece o artigo 21a: “Compete ao relator convocar juízes ou desembargadores para a realização do interrogatório e de outros atos da instrução dos inquéritos criminais e ações penais originárias, na sede do tribunal ou no local onde se deva produzir o ato, bem como definir os limites de sua atuação”.

Mas, não. Entregou o caso à polícia, a quem ele passou a dar orientações: façam isso, façam aquilo. Só que a polícia tem noção de seus limites e, na hora de interrogar Bolsonaro, veio a furo o problema. Bolsonaro queria depor por escrito. Então a polícia teve que consultar o Celso de Mello: pode o investigado depor por escrito?

Como é de seu hábito, por não ter sido contemplado pela natureza com o dom da síntese, Celso de Mello gastou várias laudas para dizer que não, que Bolsonaro não podia depor por escrito: tinha de ser cara a cara com a polícia. E o pior é que fez isso durante período de licença saúde.

O ministro está licenciado, não participa das “sessões virtuais”, porque a doença o impede. Sua ausência foi substituída pelo parágrafo único do art. 146 do Regimento Interno do STF, absolvendo um réu de colarinho branco, que teve sentença anulada. Aquela disposição regimental, própria dessa pátria dos coitadinhos, determina que o impetrante de habeas corpus seja beneficiado em caso de empate de votos.

Mas,  nesses devaneios legais, prevalece a vontade do ministro sobre a objetividade do sistema. Acuado pela pressa em despachar os processos que envolvem o presidente Jair Bolsonaro, Celso de Mello foi procurar na Lei Orgânica da Magistratura um dispositivo que o autoriza a fazer seus julgamentos no remanso do lar, entre colchas e lençóis.

 

 

 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

 

O SONHO

Com as bochechas róseas debaixo da cabeleira sedosa ajeitada para a festa da posse, Luiz Fux expediu um sorriso, que foi levado pelas câmeras à humanidade apagada no anonimato. E confessou, ensopado de glória: seu sonho, desde trinta anos atrás, era ser ministro do Supremo Tribunal Federal.

Para quem não sabe, ou nunca ouviu falar, é bom explicar como se chega a ministro do Supremo. Assim: ninguém é procurado em casa, e indagado “oi, cara, você quer ser ministro do Supremo? A gente lembrou de você, por causa dessa belezura toda, por causa dessa simpatia cativante e desse seu jeito escancarado de gente finíssima, de quem não se mete na bandalheira da política. Sem falar no imenso saber jurídico que lhe vaza pelos olhos”.

Não. Nada disso. Não é assim que funciona. O candidato tem que correr atrás. A primeira coisa que o sujeito precisa é se dobrar, se abaixar, fazendo aquilo que a sabedoria das vovós desaconselhava: não se abaixar, porque quanto mais a gente se abaixa – diziam elas – mais a platibanda traseira aparece, mostrando os fundilhos.

Então, esse é o começo: se enrolar no braço de um poderoso, que saia anunciando o candidato como seu afilhado. Porque sem padrinho, ó, nada feito. Não existe ministro do Supremo sem padrinho. Mas isso é apenas o começo. Depois tem que fazer a via sacra. Devidamente emplacado pelo padrinho, o cara precisa se abaixar, sabem pra quem? Para os políticos, gente, logo pra quem, para os políticos, batendo de porta em porta no gabinete dos senadores e rebolando pelos corredores, conforme o andamento da música.

Com o Fux não foi diferente. Ele andou de Herodes a Pilatos pedindo graças, bênçãos e favores, puxando orações no catecismo do poder. Andou atrás de gente do Lula, tomou chá de banco, gastando os fundilhos, esperando pelo futuro padrinho, como um coitadinho qualquer da vida, desamparado de Deus e dos homens. Ele conhecia o caminho, porque já havia passado por essas mesmas maldades do destino, a fim de vestir a toga de ministro do Superior Tribunal de Justiça, pelas mãos do Fernando Henrique Cardoso.

Corre por aí uma frase que lhe pulou da boca, quando indagado foi pelo então ministro da Justiça da Dilma, o José Eduardo Cardozo: o que faria no processo do mensalão. “Mato no peito”, teria dito o Fux. A lenda só não revela se, com esse dizer, Cardozo encharcou a cara de lágrimas e correu para o abraço, fazendo estalar os ossos dos peitos de um e de outro, com um juramento de amor eterno. O certo é que o nome do Fux foi parar nos ouvidos da Dilma, que lhe deu a partida para a glória.

No dia da posse como presidente do STF, em plena pandemia, durante o espetáculo das pompas e discursos que repetem a lengalenga de sempre, Fux andava mais faceiro do que pinto no farelo. O destino realizara seu sonho: aquele pomposo cargo público, sustentado pelos contribuintes, que mais exige padrinhos do que talento.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

 

A CONSTITUIÇÃO

 

Não passa de um puxadinho jurídico, mais cheio de direitos do que de deveres, a Constituição de mil novecentos e oitenta e oito, comandada pelo senhor Ulysses Guimarães, que foi comido pelos peixes, e Nelson Jobim que, de advogado em Santa Maria passou a ser banqueiro, e na qual teve participação também o Lula, que já foi metido em xilindró de rico, para fazer de conta que estava preso.

 

Mas, há quem a trate como “carta magna”, escrínio de “avanços e conquistas”. Há quem se fez doutor, extraindo dela devaneios jurídicos divorciados do sentido de justiça. A dona Carmen Lúcia, por exemplo, ministra do Supremo Tribunal Federal, investiu suas sortidas prendas no título de “constitucionalista”. O Gilmar Mendes, que enche a voz com sibilos de desdém e assume o jeito infeliz de quem ressuscita antigos rancores, quando invectiva ideias, atitudes ou pensamentos dissonantes dos seus, consegue construir trompas de falópio na “Carta Magna”, para que ela possa parir novos seres jurídicos.

 

Lá, onde a conspicuidade é uma estranha senhora, se invoca a Constituição como uma bíblia de fundamentos jurídicos, ou como uma vestal intocável do Direito, uma virgem blindada, de cuja virgindade se têm como guardiães os ministros. Esses podem fazer dela o que lhes dá no bestunto.

 

Mas, nenhum jurista teve conhecimentos sólidos, suficientes para apontar nela, até hoje, as barbaridades que a conspurcam, e vão de erros de vernáculo a direitos que, no confronto, se anulam.

 

Neste Brasil, habitado por uma maioria de analfabetos funcionais, poucos são os que enxergam na Constituição um depósito de traumas e frustrações dos valentões que, para não ter de pôr à prova sua masculinidade, se escafederam do país.

 

O que aconteceu no final da semana passada mostra que, sendo um penduricalho de direitos, essa coisa chamada Constituição, mais serve para confundir do que para prestar segurança jurídica.

 

Uma juíza do Rio de Janeiro impediu a divulgação de dados pessoais de Flávio Bolsonaro, que poderiam “ferir a imagem” dele. Diante disso, a TV Globo, a Associação Brasileira de Imprensa, a Associação Nacional de Jornais, e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo clamaram aos céus contra a censura imposta pela decisão da magistrada carioca.

 

Olhem o que diz a Constituição do Ulysses, do Jobim e do Lula, no art. 5º, inc. X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas...” Contas e movimentações bancárias, declarações de imposto de renda, etc. são dados relativos à vida privada das pessoas. Comparem com o estabelecido no IX do mesmo artigo 5º: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

 

São proposições antagônicas. Mas a TV Globo invoca seu direito, pescando na Constituição do Ulysses a parte que não arde no dela. Será que nenhum diretor de veículo de comunicação pediria socorro na Justiça, para impedir que fosse estampada, nas páginas de algum concorrente, foto “artística” (art. 5º, IX) de sua mulher, fazendo ginástica na cama com o respectivo personal trainer?

 

 

 

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

 

O CORONAVIRUS NO JUDICIÁRIO

 

O Conselho Nacional de Justiça é um monstrengo jurídico concebido na Constituição de 1988 e sustentado pelos cidadãos que trabalham e pagam impostos. Não pertence ao Poder Legislativo, nem ao Executivo. Também não faz parte do Judiciário. É um filho bastardo da burocracia inútil, mas quem o sustenta, como se o espermatozoide fosse seu, é o contribuinte. Tanto é um bastardo jurídico, que nem um capítulo à parte mereceu, na Constituição. Apareceu lá, enjambrado no artigo 103 e amparado pela letra B, como um filho sem pai, colocado na porta do STF.

Botaram esse monstrengo institucional no mundo jurídico, com a finalidade de moralizar o Poder Judiciário.  A Constituição Federal, no § 4º do artigo 103B, o encarrega substancialmente do “controle da atuação administrativa e financeira do Judiciário”. Do inciso I ao VII desse parágrafo, lavram miudezas em suas atribuições sobre o comportamento dos juízes, e uma genérica autorização para a expedição de “atos regulamentares” ou recomendação de “providências”.

Com um guardião desse tipo, criado nos cueiros da burocracia, o Judiciário não arredou um milímetro de sua postura antiga: continua sendo apredrejado como uma Geni qualquer da vida. Nos últimos tempos, mais apedrejado do que nunca, sem cerimônia de foro e sem tratamento de “excelência”.

Inchado como cabide de empregos através de “requisições” (§ 5º, inc. III), pagando comissões, funções gratificadas, ajudas de custo e, certamente, jetons, tudo posto na conta do contribuinte, o CNJ mais prejudica a sociedade do que a beneficia.

 Com parte de “recomendar providências” ele costuma meter o bedelho em questões de justiça, que não lhe dizem respeito. Foi o que aconteceu, com a chegada do coronavirus: “recomendou” aos juízes a análise da situação carcerária de presos, para os liberar, livrando os presídios da contaminação do vírus chinês. No rastro dessa recomendação, muito bandido foi solto. E agora, como se não bastasse o vírus, o povo ainda tem que se cuidar da bandidagem e das recomendações do CNJ.

Homicida reincidente, encarcerado em prisão federal, foi um dos contemplados por essa ideia de que bandido não deve contaminar bandido, mas pode ficar livre, contaminando a população e levando-a ao pânico.

Mas, a pronta misericórdia, desatada por sua soltura, acendeu clamor público. Então, para amansar a língua ferina do povo que paga impostos e sustenta juízes, um desembargador, representando a comunicação social do Tribunal de Justiça correu a dar explicações sobre o acontecido: que o acusado não seria solto, porque era réu em 51 processos na mesma vara que lhe permitira a soltura, e ainda tinha 32 ordens de prisão preventiva.

Um sujeito com 51 processos nas costas é muito mal servido de inocência. Em papel, a folha corrida dele é maior do que um rolo de papel higiênico. Para a sorte do povo, sua liberdade foi só um faz-de-conta, desaparelhado de serventia, não valeu nada. Só se prestará como matéria para ilustrar o folclore judiciário, por conta do CNJ e dos doutores da lei, cujo léxico cabe num dedal de costureira.

 

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

 

A RACHADINHA

Que Deus, quando criou o homem, estragou sua tranquila eternidade por toda a eternidade, não há dúvida. Mas, sabe-se lá porque fez isso. Para sair da rotina, talvez. E aí, deu no que deu. A história está na bíblia, para quem quiser ver. Mas, cronista nenhum está livre de escrever um evangelho particular, para botar nele o que os exegetas não botaram na bíblia. Detalhes, coisas do cotidiano, da vida.

Por exemplo: ao ver o Adão deitado, sem fazer nada, naquele paraíso que lhe fornecia tudo de graça, com abundância e fartura, peladão, coçando a bolota dependurada debaixo duma estrovenga que jazia, mole e inglória, entre as virilhas, Deus deve ter dito para si mesmo: hum...

Mas na bíblia os exegetas escreveram que Deus tinha dito “não é bom que o homem fique só”. E daí lhe veio a ideia de criar também a mulher. Era preciso dar mais uma finalidade para a dita estrovenga do Adão, criada nele a serviço da bexiga. Então Deus aproveitou um dia que o Adão estava na sesta, com o traseiro pra cima: tirou-lhe uma costela, para nela esculturar a mulher. E enquanto botava esmero naquela arte, matutava o que fazer, para tudo se encaixar como ele havia planejado. E a ideia não demorou porque, afinal, Deus é Deus, mal pensou já está feito: a rachadinha.

Aí,  minha gente, nem precisa contar mais nada. Se o mundo está saturado de povo é por causa do encaixe aquele, para o qual foi necessário criar a rachadinha.

Por causa da rachadinha, muito serviço já foi dado para a polícia. E agora os políticos inventaram outro tipo de rachadinha, que está dando não só serviço para a polícia, como manchetes para a grande imprensa, que se alimenta de cochichos e fuxicos. Prenderam o Queiroz, por causa da tal de rachadinha. E a mulher dele também. Alguém deve ter pensado: deve ter mulher se aproveitando da rachadinha.

Bom, para que não se fique confundindo uma rachadinha com outra, é preciso explicar que a rachadinha dos políticos consiste em se apossar de parte dos salários de seus assessores.

Pois, agora sobrou também para a dona Michelle Bolsonaro. O diz-que-diz lhe imputa benefícios extraídos da rachadinha que levou para a cadeia o Queiroz. Isso calhou no gosto daquela imprensa intoxicada por fuxicos, que procura armar palcos em todos os recintos da pátria, para exibir os escândalos da família Bolsonaro. Então, escolheram um mártir capaz de provocar incômodos piores do que cólicas no Bolsonaro.

 O cobra mandada não fez pergunta direta ao presidente, mas enrolada num jeito que implicava o envolvimento da primeira dama com a rachadinha da mulher do Queiroz e do próprio. Desnessário é dizer que o Bolsonaro subiu nas tamancas e ameaçou meter sua munheca de capitão nas ventas do desaforado.

Em cima dessa rusga, os palcos de escândalos serviram para encenar nova peça. A ópera do “Ataque à Imprensa” foi recriada e passou a ser entoada nos entreatos da pantomima principal, que é a “Rachadinha”.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

 

A GANGORRA DA JUSTIÇA

Os homens criam seus deuses, elegendo as próprias tendências e engenhos como modelo do caráter dessas divindades. A mitologia, gerada por crenças e religiões, tem suas balizas nas limitações do animal humano. Como esse não conhece deuses, só pode imaginá-los dentro dos limites de suas fantasias.

A deusa Têmis, criada pela mitologia grega, tinha ascendência divina. Seu pai era o deus Urano, com o qual a mãe-terra, Gaia, se envolvera, para criar o lar eterno dos deuses. Mas Gaia também teve casos com Ponto e Éter. E Urano, um deus lascivo, acabou sendo castrado pelo filho Kronos e teve os testículos jogados no mar.  Têmis, crescida dentro dessa família intrincada e ricamente fantasiosa da mitologia grega, casou-se com o sobrinho Zeus, filho do malvado Kronos.

Essa foi a deusa adotada no mundo inteiro como símbolo da Justiça. Em Brasília lá está, esculpida em pedra, vendada, com os escondidos de cima meio à mostra, estabelecida na frente do Supremo Tribunal Federal. Logo ela, que não teve modelos de convivência com equilíbrio, está servindo de paradigma para a justiça. Resultado: mais é usada sua espada para castrar, do que a balança para equilibrar direitos, dando a cada o que é seu. É dentro de si que, atiçado por suas inclinações e tendências, por impulsos momentâneos de conveniência, cada juiz busca razões para decidir.

Vejam o caso do Queiroz e a mulher dele. O Ministério Público instaurou inquérito a partir de movimentações bancárias “atípicas” de Fabrício Queiroz. Quis interrogá-lo, mas Queiroz não compareceu ao interrogatório. Então oferecida denúncia, ao que parece, por crime de “rachadinha”, foi decretada a prisão não só do Queiroz como de sua mulher. Com relação a essa, não se tem a menor ideia de que crime tenha ela cometido.

O juiz Flávio Nicolau, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, usando do poder que a lei lhe concede, gastou quarenta e seis páginas, copiando a denúncia oferecida pelo Ministério Público para decretar a prisão de Fabrício Queiroz e da mulher dele.

Luiz Otávio Noronha, presidente do STJ, concedeu Habeas Corpus a Fabrício Queiroz, em razão das condições de saúde do paciente, alegamente precárias, outorgando-lhe a prisão domiciliar. Na carona, a mulher de Queiroz foi para casa também.

Mas, recebendo os autos, o ministro relator original da causa, Félix Fischer, como diz a imprensa, “derrubou a prisão domiciliar” do casal.

Por último, Gilmar Mendes, “derrubando” a ordem de prisão determinada por Fischer, concedeu ao casal a graça inconcebível de permanecer no remanso do lar com tornozeleira. Para isso, meteu o dedo na fragilidade dos argumentos unilaterais do Ministério Público, usados pelo juiz Flávio Nicolau.

Hoje, no Brasil, a justiça não passa de um repositório de vaidades, cujo agente é o poder. No espetáculo forense, os réus servem como gangorra para a deusa: um juiz ora está por cima, ora está por baixo. E quem necessita dessa justiça precisa suportar a certeza de que o ego deles, juízes, é o filtro pelo qual passa a lei.

 

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

 

O DIREITO DE RESPIRAR

Perdi o direito de respirar, de respirar o ar da rua, de sentir o fedor de estrume de cavalo no asfalto, dos lodaçais apodrecidos que são trazidos pela mensagem do vento, e de outros fedores, fermentados pela poluição da cidade, não perfeitamente identificados pelo meu olfato.

Perdi o direito de sentir o perfume da moça de corpo bem apanhado e cabelos recém lavados, que passa por mim apressada, na direção da estação do trem, sem se dar conta de que eu existo e de que me sinto feliz com perfume dela. Por decretos, fui privado do direito de sentir as sobras de felicidade que ela deixa por onde passa, de respirar seu cheiro sedutor, próprio para despertar instintos adormecidos. Não tenho mais o direito de respirar esse olor que seu corpo exala, enquanto o toc-toc do salto de seus sapatos tira a calçada do silêncio e serve como metrônomo para o compasso do meu coração.

Perdi o direito de sentir o cheiro da brisa humana, o cheiro das rosas dos jardins por onde passo, o vago cheiro que não tem endereço, nem destino. Só tenho o direito de respirar o meu próprio cheiro, que não tem cheiro nenhum, porque, em razão da intimidade que meu olfato tem com ele, um não dá bola para o outro. Então só respiro o que me sai pelas ventas e fecho a boca, para não me engasgar com o meu próprio cheiro. Nem ao cheiro úmido dessas névoas opressivas de agosto eu tenho direito.

Perdi também o direito de tomar cachaça com catuaba no bar, o direito de me aglomerar, de cair na gandaia. Perdi a chance de levar pisão no pé, de ser empurrado pelo mal educado apressado que não respeita os velhinhos e, consequentemente, o direito de me expressar com palavrão entre dentes ou com boa dicção, na rua.

Sim, senhores, perdi o direito de respirar, por conta dos cofres públicos. Porque do meu direito de respirar depende a vida de outras pessoas, pelas quais o Poder estatal é responsável, como está bem escrito no artigo 196 da Constituição Federal. Da minha respiração depende o número de leitos ocupados, pelos quais se devem responsabilizar a União, o Estado e os Municípios. E como eles não se responsabilizam, resolveram responsabilizar a minha respiração. Eu é que, para aliviar a responsabilidade dos governantes, sou privado de respirar o ar que a natureza me fornece de graça, e do qual o mundo está saturado.

Agora, quem manda no meu olfato são as trevas do poder. Principalmente os governos estaduais e municipais, que me ameaçam com multa e até com prisão, se eu me atrever a respirar o ar da rua. O que, em outras palavras, significa imposto sobre a respiração do ar.

E assim vou andando, isolado, de máscara, esperando que o mundo pós-apocalipse me encontre ainda vivo, vacinado pelos chineses, com a boca cheia de dentes, o cabelo cortado, e com altíssima taxa de testosterona, desencadeada pelos decretos de isolamento.