segunda-feira, 21 de novembro de 2011

MINISTRO GARANTE CONSUMO DE CRACK

Janer Cristaldo

Em Copenhague, visitei Christiania. É uma espécie de estado dentro do Estado, um território livre onde se pode vender e consumir drogas. O local, squaterizado em 1971, foi cuidadosamente arranjado de modo a parecer terra arrasada após algum conflito nuclear, no melhor estilo dos filmes-catástrofe de Hollywood.
Naquela época – leio na rede - muitas pessoas provenientes de diversas grandes cidades dinamarquesas sentiam-se traídas pelo governo, acreditando haver certo descaso quanto ao sistema habitacional por parte dos políticos e seus representantes. Os primeiros ocupantes da área que mais tarde viria a ser nomeada de Christiania tinham como ideal comum a rejeição a certos valores morais e convenções sociais e, principalmente, aos ideais capitalistas que assolaram a Europa no contexto pós-Segunda Guerra Mundial. Os habitantes de Christiania também queriam um espaço verde e aberto, para que pudessem criar seus filhos longe do crescente tumulto de Copenhague.
Hoje, ali se vende abertamente maconha, haxixe, cogumelos alucinógenos e algumas coisas mais que eu, leigo no assunto, não sei quais são. Numa cidade rica como a capital dinamarquesa, não há ruas calçadas, mas apenas chão de terra. No bairro, vê-se quase só marmanjos entre os vinte e poucos e trinta anos, todos desocupados em pleno horário de trabalho. Mulheres são escassas e, de modo geral, parecem ser turistas.
Justo naqueles dias em que perambulava por Christiania, li na Folha de São Paulo que território semelhante foi inaugurado aqui na cidade, na rua Helvétia, há uns quinze minutos a pé aqui de casa. Escrevi sobre o assunto em 2009. Enquanto José Serra, candidato à Presidência da República, tentava lançar seu nome através de uma legislação antifumo demagógica e pior – inconstitucional -, a droga corria solta nas ruas de São Paulo. Na região da estação da Luz, havia um vasto território onde o consumo de toda e qualquer droga era – e ainda é - livre. Como a droga mais consumida era o crack, convencionou-se chamar aquele espaço de Cracolândia. Mas lá você encontra o que quiser, desde a canabis até a cocaína.
Não imagine o leitor que este comércio é operado na clandestinidade. Nada disso. Ocorre à luz do dia, em plena rua, na frente de viaturas de policiais. Não gosto muito da palavra dantesco, me parece um lugar comum, mas é a única que encontro para definir o local. Dante ilustrado por Doré. Certo dia, passei de táxi por uma extremidade da rua Guaianases, a que mais concentra drogados. Dantesco e assustador. Centenas de zumbis, crianças e adultos, homens e mulheres, enrolados em cobertores e capuzes, cachimbando crack, coalhavam a rua. Nenhum taxista ousa entrar no pedaço. Tudo isto no centro da mais imponente capital do continente.
A Prefeitura quer revitalizar a Cracolândia. Para isso, está tocando um projeto que chamou de Nova Luz. Uma vasta área está sendo desapropriada e será demolida para dar lugar a um centro administrativo. O que me parece uma ótica de cegos. Centros administrativos se tornam desertos depois das seis da tarde. Mesmo que os marginais sejam afastados durante o dia, todos voltarão à noite a seu habitat. Todas as semanas, os jornais nos trazem fotos de pobres coitados fumando crack. Alguns permanecem dias deitados, já nem conseguem parar em pé. Só a polícia, que tem um distrito policial justo na Cracolândia, parece não ver nada.
Ou melhor, vê. Só sendo cego e surdo para não ver. Vê mas não faz nada. Considera-se que o problema é social, não policial. Às vezes, para mostrar serviço, esvaziam as ruas do crack por algumas horas. Apenas por algumas horas. Ninguém é preso, nem usuários nem traficantes. Em pouco tempo, no mesmo dia, os zumbis estão de volta à Guaianases.
Em reportagem da Agência Brasil, o psicólogo Lucas Carvalho afirmava que a Cracolândia, em vez de sumir, “está se fragmentando em diversos pontos da cidade". Se você passar pelo centro da cidade, em torno à praça da República, verá farrapos humanos amontoados na rua, sempre em grupo e sempre enrolados em cobertores, puxando crack à luz do dia, com a tranqüilidade dos justos. A polícia nada faz, afinal o “problema é social”. A polícia será chamada, prometia então Serra, para retirar fumantes de restaurantes.
A fragmentação da Cracolândia, segundo Carvalho, está facilitando o acesso das crianças à droga. "O crack está chegando mais perto delas, antes precisava ir até a Cracolândia. Agora, a Cracolândia está por aí", afirmou. A única providência até agora tomada por ONGs que querem resolver o problema foi fornecer um cachimbo de madeira aos usuários de crack, com o objetivo de incentivar o não compartilhamento do instrumento. Isso porque os viciados constroem modelos artesanais de metal, que queimam a boca, causando feridas, e podem transmitir doenças quando compartilhado com outras pessoas.
Na época, vinte órgãos públicos e mais de 250 policiais não foram suficientes para acabar com a cena que se vê há 20 anos na Cracolândia. Seis horas após o início de uma operação destinada a revitalizar uma das áreas mais degradadas da capital, centenas de viciados voltaram às ruas, com cachimbos em mãos e cobertas nas costas, nos pontos tradicionais de consumo da droga. Em vez de atacar o problema com o rigor devido, autoridades fornecem cachimbos aos pobres diabos para que se droguem sem maiores problemas.
A novidade, agora, é que a Cracolândia foi oficializada. Centenas de zumbis tomaram um trecho da rua Helvétia e interromperam o tráfico de carros e ônibus. Temos uma Christiania em São Paulo. A polícia parece estar contente. É melhor que os drogados fiquem confinados a um espaço, em vez de espalharem-se pela cidade. Filosofia de quem não quer ver o que existe a seu redor. O crack hoje está disseminado por 90% das cidades brasileiras e veio para ficar.
Leio na Folha que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, ofereceu verba para garantir o consumo de crack. Que será repassada até o fim deste ano para a Prefeitura de São Paulo implantar oito consultórios de rua para atendimento a usuários de drogas. A maioria desses postos móveis ficará na Cracolândia. A idéia é que as unidades funcionem 24 horas e tenham médicos, enfermeiros e psicólogos. As equipes poderão, segundo o ministro, internar os dependentes químicos para tratamento.
"É como se fosse um trailer, uma Kombi que fica 24 horas. Se o profissional de saúde avaliar que aquela pessoa corre risco de vida, nós temos protocolos claros da internação involuntária, inclusive defendida pela Organização Mundial da Saúde", declara Alexandre Padilha.
O ministro establece uma diferença bizantina entre internação involuntária e internação compulsória. No caso da primeira, que será adotada pelos consultórios de rua em São Paulo, o recolhimento do viciado se dá após uma análise minuciosa de sua situação, sobretudo se a pessoa está correndo o risco de morrer. Internação compulsória seria um procedimento mais drástico. Viciados que vivem na rua são recolhidos independentemente de correrem risco iminente de morrer.
Ou seja, ao oficializar a Christiania paulistana, o ministro deixa claro que só vai tratar do problema quando o drogado estiver morrendo. Se não estiver morrendo, que continue se drogando até a hora da morte. Falei em Christiania, mas há uma diferença entre o território liberado para a droga em Copenhague e o de São Paulo. Se há algo podre no reino da Dinamarca, pelo menos não vemos moribundos nas ruas. Nem os drogados interrompem o tráfego dos cidadãos.
Chez nous, quando os pobres diabos estiverem com o pé na cova, o ministério da Saúde pensará no assunto. Antes, não.

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