João Eichbaum
Ela levanta, de segunda a sexta, todos
os dias, às quatro da manhã. Seja frio, seja quente, chova ou esteja o sol se
preparando no horizonte, com as ventanias doidas que trazem tempestade ou com o
minuano gélido que chicoteia as orelhas, ela levanta às quatro.
Àquela hora, o bairro mais triste de
Canoas, o Guajuviras, está mergulhado no silêncio, que só é arranhado pela
tosse dos trabalhadores que, como ela, têm de sair de madrugada, para trabalhar
em Porto Alegre.
Então ela toma o ônibus que vai, aos
poucos, se tornando pequeno, as pessoas se empurrando, se roçando umas nas
outras. O coletivo faz voltas e mais voltas, arrebanha passageiros em vários
bairros, joga o povo de um lado para outro, como os caminhões de gado, e o deixa, finalmente, na estação Mathias Velho do trem suburbano,
depois de quase uma hora circulando.
Ali, o aperto se repete, as pessoas
voltam a se roçar umas nas outras, os rostos fechados, sem sorrisos, todos com
cara de sono, balançando ao ritmo do trem que dança sobre os trilhos.
Às sete horas ela desembarca na estação
central do Mercado e pega mais um ônibus, que a deixa, finalmente, na frente do
suntuoso prédio do Ministério Público.
Ali, no meio daquele luxo, daquelas
salas bem equipadas, com computadores, ar condicionado central, mesas e
cadeiras modernas, ela começa o seu trabalho, varrendo, passando pano no chão,
esfregando os vasos dos banheiros, por onde passaram as bundas do Ministério
Público, carregando os papéis onde se encontram as marcas dos detritos desse
mesmo Ministério Público, que é uno e indivisível e agora também ubíquo.
No fim da tarde, a viagem de regresso,
depois de um dia inteiro trabalhando de pé: os ônibus e o trem cheios, as
pessoas se roçando umas nas outras, tendo que aguentar a fedentina de quem
ralou, trabalhou com sujeira, pó e detritos humanos, como os do Ministério
Público, por exemplo.
Já é noite, quando ela chega no seu
tugúrio de um quarto, sem reboco, coberto com pedaços de telhas, um corredor
apertado que serve de cozinha ao mesmo tempo, e leva para um banheiro sem porta
com um vaso sem tampa e sem caixa de descarga, mas com um baldezinho de
prontidão, para juntar água da torneira, a fim de mandar embora o que não
presta.
Estou falando nela hoje, depois de ler a
notícia de que o filho do Eike Batista teve sua Ferrari apreendida, e me lembrando
também de um casamento para o qual fui convidado ontem, me deslumbrando com uma
das noivas mais belas do mundo, enquanto ouvia o padre proclamar: “Deus é muito
generoso...”
Um comentário:
Barbaridade, a pimenta ficou para o final. Até aí eu estava vendo uma crõnica social impressionante, repartida entre os de baixo e os daquele prédio de luxo. Quando não esperava mais nada, veio o solavanco, maior do que dos ônibus nas ruas da periferia. Gigi
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