terça-feira, 5 de março de 2013


 COM LÁGRIMAS NÃO SE FAZ JUSTIÇA

João Eichbaum

Inconformados com o barulho na boate Kiss em Santa Maria, os vizinhos foram ao Ministério Público. Lá chamados, os donos da casa noturna se comprometeram a fazer isolamento acústico. Para se desobrigarem do compromisso, usaram espuma, dessa com que se fazem colchões baratos.
O prédio da boate só tinha uma porta, e  a única janela estava trancada para sempre, a poder de pregos enormes e tábuas grossas.
Naquela noite, que seria a última para mais de duas centenas de jovens, a festa estava sendo animada por várias bandas. E foi justamente a música, sem a qual não haveria festa, que abriu o caminho para a morte. Para incrementar o “show” com fumaça colorida, um dos músicos usou um   “sinalizador”. Atingida por faíscas, a espuma usada como isolamento térmico desprendeu agentes químicos que, transformados em fumaça, deram causa a desmaios, sufocação e intoxicação das pessoas que lá se encontravam. Morreram 240 pessoas, algumas por queimaduras, e a maioria por intoxicação.
O produtor da banda tinha comprado o “sinalizador” mais barato, aquele que produz faíscas, preferindo-o ao outro, mais caro, que só produz fogo artificial. O vocalista da banda foi quem acionou o artefato, ao iniciar a apresentação do grupo.
A partir da definição do artigo 18, inc. I do Código Penal, segundo o qual é doloso o crime “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” pergunto a vocês: algum deles “assumiu” o risco de provocar (o resultado) morte de alguém?
Comecemos pelo verbo. “Assumir” significa admitir, aceitar, avocar, tomar ou chamar para si.
Portanto, para que alguém “assuma” o resultado de alguma ação é preciso que conheça, de antemão, o potencial dessa ação. Por exemplo: eu, que tenho  péssima pontaria, resolvo imitar o atirador de facas do circo e convido para cobaia um amigo. Conhecendo minha inabilidade, eu estou assumindo o risco de ferir ou matar o meu amigo. Tenho consciência de que meu ato é um potencial causador de dano, embora só queira treinar e não provocar qualquer mal ao amigo.
 Poderiam os donos da boate admitir, ter consciência de que pudesse ocorrer um incêndio na casa, se não lidavam com fogo, se não havia cozinha, se não havia gás? E se não tinham consciência da possibilidade de incêndio, ser-lhes-ia exigível que se preocupassem com a existência de uma só saída,  e com a ventilação, se estavam só comprometidos, com o escapamento do barulho?
O produtor da banda comprou um artefato que produzia faíscas. Mas, faíscas só produzem incêndio se forem alimentadas por material comburente. Sabia o produtor da banda que a boate estava revestida com material comburente?
A mesma pergunta vale para o cantor que acionou o sinalizador (há quem diga que ele apenas empunhava o artefato, que foi acionado pelo produtor). Tinha ele consciência de que o revestimento da boate era altamente inflamável?
E mais: um sinalizador não é, por si mesmo, um potencial causador de incêndio. Minha consciência de risco só me impede de acioná-lo na direção de um tonel de gasolina, por exemplo.
O chamado “dolo eventual” está sendo vulgarizado, sem um mínimo apoio científico na área jurídica. Mas é artificalmente construído pelo desconcerto emocional, pelas lágrimas, pelo abalo coletivo, pelo estupor do momento. Como se o Direito fosse um armazém de sentimentos, que dispensa a lógica, a razão, o raciocínio.
Mas, o furo está bem mais em baixo: os aplicadores da lei não conhecem o vernáculo. E por isso confundem imprudência com consciência de probabilidade.


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