COM LÁGRIMAS NÃO SE FAZ JUSTIÇA
João
Eichbaum
Inconformados com o barulho na boate
Kiss em Santa Maria, os vizinhos foram ao Ministério Público. Lá chamados, os
donos da casa noturna se comprometeram a fazer isolamento acústico. Para se
desobrigarem do compromisso, usaram espuma, dessa com que se fazem colchões
baratos.
O prédio da boate só tinha uma porta,
e a única janela estava trancada para
sempre, a poder de pregos enormes e tábuas grossas.
Naquela noite, que seria a última
para mais de duas centenas de jovens, a festa estava sendo animada por várias
bandas. E foi justamente a música, sem a qual não haveria festa, que abriu o
caminho para a morte. Para incrementar o “show” com fumaça colorida, um dos
músicos usou um “sinalizador”. Atingida por faíscas, a espuma
usada como isolamento térmico desprendeu agentes químicos que, transformados em
fumaça, deram causa a desmaios, sufocação e intoxicação das pessoas que lá se
encontravam. Morreram 240 pessoas, algumas por queimaduras, e a maioria por
intoxicação.
O produtor da banda tinha comprado o
“sinalizador” mais barato, aquele que produz faíscas, preferindo-o ao outro,
mais caro, que só produz fogo artificial. O vocalista da banda foi quem acionou
o artefato, ao iniciar a apresentação do grupo.
A partir da definição do artigo 18, inc.
I do Código Penal, segundo o qual é doloso o crime “quando o agente quis o
resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” pergunto a vocês: algum deles
“assumiu” o risco de provocar (o resultado) morte de alguém?
Comecemos pelo verbo. “Assumir”
significa admitir, aceitar, avocar, tomar ou chamar para si.
Portanto, para que alguém “assuma” o resultado
de alguma ação é preciso que conheça, de antemão, o potencial dessa ação. Por
exemplo: eu, que tenho péssima pontaria,
resolvo imitar o atirador de facas do circo e convido para cobaia um amigo.
Conhecendo minha inabilidade, eu estou assumindo o risco de ferir ou matar o
meu amigo. Tenho consciência de que meu ato é um potencial causador de dano,
embora só queira treinar e não provocar qualquer mal ao amigo.
Poderiam os donos da boate admitir, ter
consciência de que pudesse ocorrer um incêndio na casa, se não lidavam com
fogo, se não havia cozinha, se não havia gás? E se não tinham consciência da
possibilidade de incêndio, ser-lhes-ia exigível que se preocupassem com a
existência de uma só saída, e com a
ventilação, se estavam só comprometidos, com o escapamento do barulho?
O produtor da banda comprou um
artefato que produzia faíscas. Mas, faíscas só produzem incêndio se forem
alimentadas por material comburente. Sabia o produtor da banda que a boate
estava revestida com material comburente?
A mesma pergunta vale para o cantor
que acionou o sinalizador (há quem diga que ele apenas empunhava o artefato,
que foi acionado pelo produtor). Tinha ele consciência de que o revestimento da
boate era altamente inflamável?
E mais: um sinalizador não é, por si
mesmo, um potencial causador de incêndio. Minha consciência de risco só me
impede de acioná-lo na direção de um tonel de gasolina, por exemplo.
O chamado “dolo eventual” está sendo
vulgarizado, sem um mínimo apoio científico na área jurídica. Mas é artificalmente
construído pelo desconcerto emocional, pelas lágrimas, pelo abalo coletivo,
pelo estupor do momento. Como se o Direito fosse um armazém de sentimentos, que
dispensa a lógica, a razão, o raciocínio.
Mas, o furo está bem mais em baixo:
os aplicadores da lei não conhecem o vernáculo. E por isso confundem
imprudência com consciência de probabilidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário