RIMA POBRE DÁ CADEIA
João
Eichbaum
joaoeichbaum@gmail.com
Alegando a necessidade de
garantia da ordem pública, a polícia de Santa Maria pediu a prisão
preventiva de dois músicos e dos dois donos da boate Kiss, onde a fumaça e o
fogo, numa noite de festa, mataram 240 jovens.
A prisão preventiva – diz o artigo 312 do Código de Processo Penal - poderá ser decretada como
garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução
criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da
existência do crime e indício suficiente de autoria.
Agora leiam a seguinte poesia:
O fato foi extremamente
grave. Comoveu o planeta. Os olhos do mundo focaram Santa Maria. O Planeta
chorou. Do Oiapoque ao Chui, de um Polo a outro do planeta. Todos ficaram
consternados com o que aconteceu no dia 27 de janeiro do ano em curso. Sem
dúvida que a ordem pública ficou abalada e deve ser garantida.
Pergunto eu: essa poesia tem algo a ver com o artigo 312 do Código de
Processo Penal? Ordem pública rima com “choro”? Ou será que o juiz quis rimar
“abalada” com “balada”, mas perdeu o rumo?
Ou o seguinte texto:
A comunidade sente o peso
do evento, o que não pode ser desconsiderado. O Direito não é uma regra de
alguns, é a regra de todos. Uma situação desse porte, avassaladora, é a tradução perfeita da afronta
à ordem pública.
Por favor, fechem os olhos para as feridas no vernáculo, que foram
produzidas, sem piedade, pelo juiz. De certo, no concurso que ele prestou, não
se exige língua portuguesa. Ou os examinadores conhecem menos o vernáculo do
que os examinados.
Mal temos espaço para a exegese do artigo 312 do CPP.
Para o juiz, “a ordem pública
ficou abalada”, porque o “Planeta (assim, com letra maiúscula. De certo Sua
Excelência estava pensando no Planeta Atlântida) chorou”, se comoveu, e porque
“todos ficaram consternados”.
Talvez pensando na insuficiência do argumento do choro e da consternação,
o comovido magistrado botou o “peso do evento” em cima da comunidade. Pronto,
aí estava uma “situação avassaladora”, traduzindo “afronta à ordem pública”.
Repito: “afronta”- substantivo que não existe no texto do artigo 312.
Sua Excelência deve ter lido muitos jornais, assistido a muita televisão,
para assumir o sentimento de todo “o Planeta”. E foi com base nesse sentimento
que ele decidiu prender os causadores da desordem anímica dele e de toda a
humanidade, da qual o meritíssimo se acha representante.
Só uma coisa – e justamente principal – ficou o juiz devendo: o povo se
revoltou, foi às ruas, houve atentados a pessoas e instituições, ninguém mais
respeitou a lei, a bagunça dominou, o pau quebrou geral, a polícia ficou
impotente, refém da desordem?
Seria bom avisar ao juiz de Santa
Maria que somente uma “situação” dessas é “avassaladora” e “traduz” a desordem que, mais do que
“afrontar”, compromete a ordem pública.
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