quarta-feira, 1 de maio de 2013


OS LIMITES DA DOR
João Eichbaum

O tsunami de fogo e fumaça, que arrasou  a alma de mais de duzentas famílias, deixou sequelas em Santa Maria. A cidade ficou pequena  para tanto sofrimento. Lágrimas rolaram, choraram até os que têm vergonha de chorar. Ninguém escapou à contaminação da dor, ninguém se livrou do tropel das amarguras,  nem mesmo pessoas que jamais tinham ouvido falar da boate boate Kiss.
Por algum  tempo, a dor foi o elo comum do povo de Santa Maria. Enquanto o nome da cidade  estava nas primeiras páginas e nas primeiras chamadas dos veículos de comunicação, era impossível se dissociar da dor, era impossível apagar tudo e partir para a rotina de cada dia, como se nada tivesse acontecido, como se a dor não estivesse presente em toda a parte, como se houvesse algum lugar em Santa Maria onde fosse possível se esconder da dor.
Mas, aos poucos, a vida foi retomando seu caminho, readquirindo suas feições reais. Os que não tinham sido atingidos diretamente pelo tragédia, que não tinham razões dentro de si mesmos para terem a alma estraçalhada, começaram a se dar conta de que a vida estava continuando, que Santa Maria não era um cemitério, que o mundo não havia chegado ao fim.
Mas só esses, a quem o destino tinha poupado de maiores estragos na alma, que não foram vergastados pela tempestade do desespero,  que só sentiram dor pela solidariedade, pelo liame gregário, podiam dar resposta às reações que a vida exigia.
Os outros, aqueles que perderam os seus, aqueles que foram despojados para sempre da companhia de alguém, aqueles de quem foi subtraído o sorriso da pessoa amada e substituído pela indestrutível imagem do sofrimento, do seu desespero na presença da morte, da despedida final, da vida que se esvaía, da injusta tortura do destino, enfim, esses não puderam se despojar da dor e passaram a desacreditar na vida. Concebendo a vida como um conjunto de responsabilidades desatendidas ou desprezadas, essas pessoas agora são sacudidas pela necessidade de saber os porquês da tragédia, são movidas pela irrecusável necessidade de conhecer os personagens sem os quais o destino teria escrito outra história.
Essa divisão, entre os que retomaram a vida normal e os que ainda estão presos à dor, eu a senti nas manifestações recebidas quando da publicação da crônica “De boatos, pecados e ficções jurídicas”. Enquanto para os primeiros a “Associação dos Familiares das Vítimas” está dominada pela obsessão de encontrar culpados, os últimos colocam sua dor acima dos valores que a harmonia social exige para a convivência do grupo.
O meio termo, porém, está ao alcance de todos: o respeito mútuo, o respeito pela dor e o respeito pelos direitos individuais. Não existe lei, regulamentando a dor. Mas os limites da dor são os direitos dos outros. A começar pela liberdade de exprimir o pensamento, quer dizer, o direito de não ser condenado ao silêncio.

Um comentário:

DEMOCRACIA JUSTIÇA E ESPIRITUALIDADE disse...

Com e devido respeito pela dor dos familiares, pois também poderia ter "perdido" um filho ou filha (a). Escutei de um meio espirita uma explicação que daria para explicar a "dura injustiça do destino".

Há mais de 100 anos se extinguiam milhares de judeus asfixiados nas cámaras de gas na Alemanha Nazista.

O argumento seria a expiação ou "resgate" dessas almas, perante a JUSTIÇA DIVINA, da qual nenhum de nós, inclusive os nosso filhos, escapa. Coisa para se pensar, meu caro Joao, de outra forma a quem culpar ou como "justificar" Deus?