OS LIMITES DA DOR
João Eichbaum
O tsunami de fogo e
fumaça, que arrasou a alma de mais de
duzentas famílias, deixou sequelas em Santa Maria. A cidade ficou pequena para tanto sofrimento. Lágrimas rolaram,
choraram até os que têm vergonha de chorar. Ninguém escapou à contaminação da
dor, ninguém se livrou do tropel das amarguras,
nem mesmo pessoas que jamais tinham ouvido falar da boate boate Kiss.
Por algum tempo, a dor foi o elo comum do povo de Santa
Maria. Enquanto o nome da cidade estava
nas primeiras páginas e nas primeiras chamadas dos veículos de comunicação, era
impossível se dissociar da dor, era impossível apagar tudo e partir para a
rotina de cada dia, como se nada tivesse acontecido, como se a dor não
estivesse presente em toda a parte, como se houvesse algum lugar em Santa Maria
onde fosse possível se esconder da dor.
Mas, aos poucos, a vida
foi retomando seu caminho, readquirindo suas feições reais. Os que não tinham
sido atingidos diretamente pelo tragédia, que não tinham razões dentro de si
mesmos para terem a alma estraçalhada, começaram a se dar conta de que a vida
estava continuando, que Santa Maria não era um cemitério, que o mundo não havia
chegado ao fim.
Mas só esses, a quem o
destino tinha poupado de maiores estragos na alma, que não foram vergastados
pela tempestade do desespero, que só
sentiram dor pela solidariedade, pelo liame gregário, podiam dar resposta às
reações que a vida exigia.
Os outros, aqueles que
perderam os seus, aqueles que foram despojados para sempre da companhia de
alguém, aqueles de quem foi subtraído o sorriso da pessoa amada e substituído
pela indestrutível imagem do sofrimento, do seu desespero na presença da morte,
da despedida final, da vida que se esvaía, da injusta tortura do destino,
enfim, esses não puderam se despojar da dor e passaram a desacreditar na vida.
Concebendo a vida como um conjunto de responsabilidades desatendidas ou
desprezadas, essas pessoas agora são sacudidas pela necessidade de saber os
porquês da tragédia, são movidas pela irrecusável necessidade de conhecer os
personagens sem os quais o destino teria escrito outra história.
Essa divisão, entre os
que retomaram a vida normal e os que ainda estão presos à dor, eu a senti nas
manifestações recebidas quando da publicação da crônica “De boatos, pecados e
ficções jurídicas”. Enquanto para os primeiros a “Associação dos Familiares das
Vítimas” está dominada pela obsessão de encontrar culpados, os últimos colocam
sua dor acima dos valores que a harmonia social exige para a convivência do
grupo.
O meio termo, porém, está
ao alcance de todos: o respeito mútuo, o respeito pela dor e o respeito pelos
direitos individuais. Não existe lei, regulamentando a dor. Mas os limites da
dor são os direitos dos outros. A começar pela liberdade de exprimir o
pensamento, quer dizer, o direito de não ser condenado ao silêncio.
Um comentário:
Com e devido respeito pela dor dos familiares, pois também poderia ter "perdido" um filho ou filha (a). Escutei de um meio espirita uma explicação que daria para explicar a "dura injustiça do destino".
Há mais de 100 anos se extinguiam milhares de judeus asfixiados nas cámaras de gas na Alemanha Nazista.
O argumento seria a expiação ou "resgate" dessas almas, perante a JUSTIÇA DIVINA, da qual nenhum de nós, inclusive os nosso filhos, escapa. Coisa para se pensar, meu caro Joao, de outra forma a quem culpar ou como "justificar" Deus?
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