Janer Cristaldo
Comentei há pouco a incultura que grassa pelo país. Leitor me envia um depoimento do escritor paranaense Roberto Gomes. Foi a uma grande livraria de Curitiba à procura de um livro de Eça de Queiroz. O rapaz que o atendeu só acertou a digitação do nome do escritor na quarta tentativa.
O leitor ainda relata dois casos. Um amigo livreiro contou-lhe que certo dia um cliente procurava O Espírito das Leis, de Montesquieu. O funcionário foi em busca da obra na estante de livros espíritas.
E um último caso: na mesma livraria, um cliente buscava Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda. O funcionário foi procurá-lo na seção de botânica.
Tudo muito lógico. Qualquer pessoa que freqüente livrarias terá casos semelhantes para contar. Esta incultura não é de hoje. Vem de muito longe. Ainda nos anos 60, quando vivia em Porto Alegre, procurei na livraria Globo Sexus, de Henry Miller. Estava em falta. Mas o atendente demonstrou erudição:
- Não temos no momento. Mas temos Nossa Vida Sexual, do Herman Khan.
Não sei se alguém ainda lembra deste livro. Era uma espécie de manual moralista de educação sexual, de um ridículo atroz. Alguns anos mais tarde, em Brasília, numa livraria do centro comercial Conic, procurei o romance Engenharia do Casamento, do escritor piauiense Esdras do Nascimento. O funcionário não teve dúvidas. Foi direto ao setor de livros técnicos.
São passados os dias em que os livreiros liam. Ou pelo menos sabiam do que tratava um livro. Livraria hoje é uma espécie de franquia, entregue a um administrador que venderia tanto cosméticos como canetas ou relógios. Confesso que, na área da informática, tenho encontrado pessoal competente. Se vou comprar um computador, o vendedor entende do que está vendendo. Já na área do livro, o desastre é total.
Em Porto Alegre, anos 70, tivemos na Rua da Praia uma pequena livraria, a Coletânea, tocada por dois livreiros que liam, o Brutus e o Arnaldo. Era não mais que um corredor, forrado de livros por ambos os lados. Em final de noite, o Mário Quintana sempre estava lá, praticando seu esporte predileto, a ronda das lombadas, como dizia. Eram livreiros que não só liam, mas que buscavam bons livros para seus clientes. Ali, tomei contato com a boa literatura que vinha do Plata. Em Porto Alegre, muito antes que o Brasil soubesse quem era Quino, estávamos lendo Mafalda.
Quando Brutus morreu, sua mulher assumiu a livraria. Dava conta do recado, é verdade, mas não tinha muitas luzes. Lembro que um dia comprei Escuta, Zé Ninguém, do Wilhelm Reich. Ela foi honesta: “é um livro estranho. Li, entendi tudo mas não compreendi nada”.
Pelo menos havia lido. Outro livreiro pelo qual tive grande respeito foi o Chaim, de Curitiba. Morei lá em 1990, quando Zélia, uma Paixão, de Fernando Sabino, era best-seller. Entre outras gracinhas, o livro narrava as cavalgadas da ministra de Economia do governo Collor com Bernardo Cabral, então ministro da Justiça. O livro vendia como pão quente.
- Posso perder dinheiro – me disse o Chaim -. Mas esse livro não entra em minha livraria.
Livreiros como este não se fazem mais. Mas o melhor – ou pior, como quiser o leitor – me aconteceu em São Paulo. Em 2006, foi lançado no Brasil um ensaio de Harold Bloom, Jesus e Javé. Tenho uma antiga diferença com o autor. Em The Western Canon, ele cita Machado de Assis e não cita José Hernández, o que para mim já o torna suspeito. Mais tarde, em uma entrevista, ele confessou que o livro sobre o cânone ocidental fora encomenda de editoras. Mas Jesus e Javé é um ensaio interessante. Bloom analisa a Bíblia não como teólogo, mas como crítico literário.
Passei numa livraria do bairro e pedi:
- Vocês têm Jesus e Javé, do Bloom?
A moça foi consultar o computador e digitou: Jesus e Djavan.
- Nada disso, respondi. Quero Jesus e Javé.
Não tinha. Fui em outra livraria e pedi de novo. O atendente foi ao computador e digitou: Jesus e jovens. Nada disso, moço. Bom, fui na terceira livraria. A moça repetiu: Jesus e Jeová?
Quase, moça. Mas ainda não é bem isso. Mas também não tinha. Desisti. Em casa, telefonei pra meu livreiro de confiança. Que também não o tinha, mas pelo menos sabia muito bem do que se tratava.
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