quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A 243ª VÍTIMA

João Eichbaum


                A última vítima da boate Kiss há de ser um velhinho ou uma velhinha, um ser humano encarquilhado, de cabelos brancos, voz pausada, com a dicção atrapalhada pela arquitetura dentária que vai desmoronando aos poucos, além de outros estragos da idade. Há de ser uma criatura que não lembra o dia de ontem, mas não consegue esquecer de um passado longínquo, que lhe roubou o filho ou a filha do coração, numa boate cheia de fumaça, fogo e veneno. Há de ser um ente humano estraçalhado pela dor, destroçado pela perda, torturado por uma lembrança de que nunca conseguiu se libertar.
Isso será daqui a muitos anos, quando Santa Maria for outra, com mais gente e mais edifícios, com mais ruas atravancadas pelo trânsito, com mais supermercados e mais shoppings, com mais lixo, mais cemitérios, menos cinemas,  menos teatros.
Mas, a dor será a mesma. A sensação do vazio, o esmagamento do coração, o sentido sem graça da vida sempre estarão presentes. Para lembrar a perda. Para lembrar o cadáver do filho ou da filha, estendido num enorme salão, com aquela carinha de criança que nunca perdeu, mas os olhos entanguidos pela morte.
Nunca lhes sairá do coração e da lembrança aquele quadro. Nem as últimas palavras do filho e da filha, se despedindo, “tchau pai, tchau, mãe”, ou não dizendo nada, naquela corrida em busca da vida, que acabou se perdendo no engarrafamento da morte.
Os anos terão passado, não a dor. Terão ficado as fotos de seus filhos, nos tenros anos de menino ou menina, do batismo, da primeira comunhão, do primeiro baile, do primeiro namorado ou namorada, da formatura, do primeiro dia na escola, do primeiro aniversário, do “parabéns a você” imorredouro, com a velinha resistindo aos sopros e os circunstantes tensos, torcendo para que o fogo abandonasse o pavio e a festa cheia de balões bombasse duma vez.
Será, sim, um velhinho ou uma velhinha, a última vítima desse espetáculo de morte que enlutou Santa Maria, cavou abismos, produziu inimizades, acirrou ódios, descrédito, desconfiança, desesperança, serviu de supedâneo para ambiciosos subirem na vida, ou último degrau para quem nada tinha a perder.
Mas, até lá, a vida vai correr, e o destino irá fazer outras vítimas. As vítimas que não suportaram a dor, as vítimas que se entregaram ao desespero por falta de confiança nas instituições, as vítimas  que apagaram da vida todas as ilusões.
Quando o último fio de esperança na reparação da perda se esgotar, os que perderam filhos ou filhas se entregarão ao curso sem volta do destino.
Entrementes, haverá outras vítimas. Haverá as vítimas da intransigência, as vítimas do constrangimento, as vítimas dos que culpam os mortais pelo sucesso da morte, as vítimas do fracasso na reparação da dor dos que perderam seus filhos. Haverá as vítimas dos conchavos, dos mal entendidos, das más intenções.
Maria de Lourdes Castro* foi uma dessas vítimas. Prensada entre o desejo de fazer justiça àqueles que foram acusados injustamente, e a frustração dos que perderam o caminho na busca de um alívio para sua dor, ela não resistiu: juntou-se às muitas vítimas da boate Kiss. Mas, não será a última, porque ódios e ambições não se deixam debelar.



*Maria de Lourdes Castro, vereadora, presidente da comissão parlamentar de inquérito que apurava eventuais responsabilidades da administração municipal no incêndio da Boate Kiss, foi traída por funcionários, hostilizada por adversários políticos e familiares das vítimas daquele incêndio. Morreu repentinamente semana passada. Médicos atribuem ao “stress” a morte dela.



Um comentário:

Gigi disse...

Muito sensível e bem fundamentada a crônica. O tema se tornou muito delicado na cidade de Santa Maria, como que refém da tragédia, doente, paralisada. Quem sabe se acolhe a sugestão e se faz uma reflexão superadora, que permita à cidade voltar a trabalhar e a viver?