SANTOS NÃO PRECISAM DE “REQUIEM”
João Eichbaum
Dos tempos que perdi
para sempre, o que mais guardei na memória foi aquele em que os ventos de
primavera despenteavam, com um carinho displiscente de namorado, a cabeleira
dos coqueiros (ou seriam palmeiras?) da frente do Colégio Santana.
Ao contrário do vento
norte, cujas loucas varreduras punham em desalinho a natureza e levantavam a
saia plissada das meninas, os ventos de primavera respeitavam até a mais tênue
pétala, para que ela não despencasse da rosa. Quando muito, tiravam o pó das
begônias e dos gerânios pendurados nas janelas.
Eles apenas ciciavam, e
assim podiamos ouvir as primeiras músicas do alvorecer, que eram os cantos dos
pássaros, e entre suas pausas, o silvo das locomotivas que partiam.
Por esse tempo, que era
o tempo dos sonhos bons, pareciam mais azuladas as montanhas que espreitavam de
longe a cidade: um belo trabalho da natureza, para combinar com a cor preferida
da primavera, o azul insondável do firmamento.
Menino ainda,
despreparado para cair nessas armadilhas cheias de insídias que a nostalgia
tece para nos fazer chorar, lá ia eu, nesse cenário organizado pela primavera,
para praticar o meu ofício diário de coroinha, na capela do Colégio Santana.
Ali se desenrolava o inverossímil espetáculo do silêncio, esperando pela voz
angelical das freiras, que reproduziam o pregão de certo anjo para uma virgem
de Nazaré.
Na sacristia, enquanto
o padre se paramentava, eu ficava atrás das vidraças, olhando os canteiros
cheios de flores, ouvindo a oração harmoniosa, que mais parecia música do que
fala, mas não saía pelas janelas.
Findo o ritual das
orações da manhã, o padre e eu nos dirigiamos para o altar.
“Entrarei no altar de
Deus” - dizia ele, em latim.
Tinha boa dicção,
apesar da voz arranhada pelo som gutural.
Talvez por isso o
tenham designado para a capelania do Colégio Santana, por não ter a voz
retumbante dos missionários e dos pregadores que faziam do púlpito a
tribuna de Deus, bramindo frases perturbadas pela emoção.
Naquela capela
silenciosa, de chão lustroso, com um altar branco e pequeno, onde corria sempre
o perfume de flores recém apanhadas, ele não precisava levantar a voz para
esbravejar contra o inferno, para condenar pecados, para convocar milícias
celestes a derrubarem as hostes do demônio.
O silêncio da capela
lhe servia como amplificador de voz. Seu tom rouquenho não o impedia de falar
mansamente, porque ele sempre foi um homem sereno. Não precisava gritar, porque
antes da fala, na frente da voz, vinha seu exemplo. Sua vida foi uma duradoura
lição de amor evangélico, sem exaltação, com pura fé, dispensando espetáculos.
Mesmo que minha memória
estivesse saturada das coisas boas e importantes do passado, eu ainda o veria,
curvado na frente do altar, esperando minha resposta ao seu anúncio de que
entraria no altar de Deus: “do Deus que alegra a minha juventude”.
E hoje, cumprindo tão
somente o rito da vida, acrescento, entre outras alegrias dessa juventude, a
chance de ter sido coroinha de um sacerdote inigualável, chamado Erebany Edu
Vargas de Pádua – que não precisa de “requiem”.
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