quarta-feira, 4 de setembro de 2013

SANTOS NÃO PRECISAM DE “REQUIEM”
João Eichbaum

Dos tempos que perdi para sempre, o que mais guardei na memória foi aquele em que os ventos de primavera despenteavam, com um carinho displiscente de namorado, a cabeleira dos coqueiros (ou seriam palmeiras?) da frente do Colégio Santana.
Ao contrário do vento norte, cujas loucas varreduras punham em desalinho a natureza e levantavam a saia plissada das meninas, os ventos de primavera respeitavam até a mais tênue pétala, para que ela não despencasse da rosa. Quando muito, tiravam o pó das begônias e dos gerânios pendurados nas janelas.
Eles apenas ciciavam, e assim podiamos ouvir as primeiras músicas do alvorecer, que eram os cantos dos pássaros, e entre suas pausas, o silvo das locomotivas que partiam.
Por esse tempo, que era o tempo dos sonhos bons, pareciam mais azuladas as montanhas que espreitavam de longe a cidade: um belo trabalho da natureza, para combinar com a cor preferida da primavera, o azul insondável do firmamento.
Menino ainda, despreparado para cair nessas armadilhas cheias de insídias que a nostalgia tece para nos fazer chorar, lá ia eu, nesse cenário organizado pela primavera, para praticar o meu ofício diário de coroinha, na capela do Colégio Santana. Ali se desenrolava o inverossímil espetáculo do silêncio, esperando pela voz angelical das freiras, que reproduziam o pregão de certo anjo para uma virgem de Nazaré.
Na sacristia, enquanto o padre se paramentava, eu ficava atrás das vidraças, olhando os canteiros cheios de flores, ouvindo a oração harmoniosa, que mais parecia música do que fala, mas não saía pelas janelas.
Findo o ritual das orações da manhã, o padre e eu nos dirigiamos para o altar.
“Entrarei no altar de Deus” - dizia ele, em latim.
Tinha boa dicção, apesar da voz arranhada pelo som gutural.
Talvez por isso o tenham designado para a capelania do Colégio Santana, por não ter a voz retumbante dos missionários e dos pregadores que faziam do púlpito a tribuna de Deus, bramindo frases perturbadas pela emoção.
Naquela capela silenciosa, de chão lustroso, com um altar branco e pequeno, onde corria sempre o perfume de flores recém apanhadas, ele não precisava levantar a voz para esbravejar contra o inferno, para condenar pecados, para convocar milícias celestes a derrubarem as hostes do demônio.
O silêncio da capela lhe servia como amplificador de voz. Seu tom rouquenho não o impedia de falar mansamente, porque ele sempre foi um homem sereno. Não precisava gritar, porque antes da fala, na frente da voz, vinha seu exemplo. Sua vida foi uma duradoura lição de amor evangélico, sem exaltação, com pura fé, dispensando espetáculos.
Mesmo que minha memória estivesse saturada das coisas boas e importantes do passado, eu ainda o veria, curvado na frente do altar, esperando minha resposta ao seu anúncio de que entraria no altar de Deus: “do Deus que alegra a minha juventude”.
E hoje, cumprindo tão somente o rito da vida, acrescento, entre outras alegrias dessa juventude, a chance de ter sido coroinha de um sacerdote inigualável, chamado Erebany Edu Vargas de Pádua – que não precisa de “requiem”.




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